09 Dezembro 2021

Ana Luisa Correia

Manter adormecidas as chamadas células dormentes do cancro.

Ana Luisa Correia

Quase todos os tipos de cancro têm o potencial para formar tumores metastáticos. No entanto, o momento exato em que a metástase surge é extremamente variável. Enquanto alguns doentes desenvolvem doença metastática logo após o aparecimento do tumor primário, noutros isto só acontece décadas mais tarde. Qual é a fonte dessa variabilidade?

Ana Luísa Correia, nova Investigadora Principal do Champalimaud Research, tem uma resposta. Nesta entrevista, fala-nos sobre as suas descobertas inovadoras e como pretende traduzi-las em novos tratamentos anti-metastáticos.

Acabou de regressar a Portugal depois de passar mais de uma década a prosseguir uma carreira internacional. De que forma essa experiência moldou a sua abordagem científica?

Nasci no centro do vale do Douro, numa pequena cidade chamada Lamego. Desde cedo que queria ser bióloga, razão pela qual escolhi o programa doutoral GABBA. Este programa permite escolhermos qualquer lugar do mundo para desenvolvermos o nosso doutoramento e eu optei por Berkeley, na Califórnia, e pelo laboratório da Mina Bissell, uma pioneira na área do cancro. 

Foi neste laboratório que investiguei como as células da mama invadem o tecido circundante à medida que a mama se desenvolve. Embora este seja um processo que acontece naturalmente durante o desenvolvimento, é relevante para a investigação do cancro uma vez que é um processo que pode ser sequestrado pelas células tumorais. Na verdade, os meus resultados revelaram uma nova função de uma molécula responsável pela invasão normal das células da mama e explicaram por que os medicamentos que têm como alvo essa molécula específica, em doentes com cancro, falharam redondamente na prevenção da invasão das células do cancro de mama.

​​A minha experiência em Berkeley foi incrível. No início, foi um pouco um choque para mim. Sempre fui uma das melhores alunas em Portugal, mas lá senti que era apenas mais uma entre muitos. Tudo parecia possível em Berkeley, e foi inspirador estar rodeada por tantos indivíduos curiosos, motivados e entusiasmados. Estar imersa naquela atmosfera foi o que realmente me empurrou para a frente e acho que, em grande medida, moldou a cientista que sou hoje.

Depois de me doutorar, decidi regressar à Europa. Integrei o grupo de Mohamed Bentires-Alj na Suíça, onde recebi financiamento externo para apoiar a minha investigação pós-doutoral, incluindo uma bolsa EMBO Long-Term e um projeto científico da Universidade de Basel.

Pode falar-nos sobre o seu projeto de pós-doutoramento?

Eu queria perceber como o cancro da mama se espalha para outros órgãos. O que realmente me intrigou foi constatar que, enquanto alguns doentes desenvolvem doença metastática logo após a deteção do tumor primário, outros podem demorar 10, 20 ou mesmo 30 anos até que sejam diagnosticadas as metástases.

Na origem desse fenómeno estão as células cancerígenas que se separam do tumor primário e migram para outros órgãos, onde permanecem dormentes. Esta é uma estratégia evolutiva comum que muitos organismos adotam quando se encontram em condições de crescimento abaixo das ideais. Um exemplo disso são os animais que hibernam. Basicamente, eles param até que a situação envolvente melhore. As células cancerígenas fazem exatamente o mesmo, e eu estava interessada em descobrir por que estas ficam dormentes e o que é que, em última instância, as faz acordar.

Como abordou estas questões e o que descobriu?

O principal desafio consistia em encontrar células cancerígenas dormentes dentro de um organismo vivo. Na altura, não tínhamos ferramentas para observar essas células em ratinhos, que é o modelo animal que utilizo na minha investigação. Para resolver esse problema, tirei partido do facto de que as células cancerígenas não dormentes se dividem naturalmente a um ritmo mais acelerado.

Com base nessa premissa, desenvolvi uma ferramenta molecular que deteta células cancerígenas que não se dividem. Uma espécie de “localizador de células cancerosas dormentes”.

Com este “GPS”, descobri que o fígado era o órgão que apresentava o maior número de células cancerígenas dormentes. Esta constatação não foi de todo surpreendente, já que o fígado é um dos principais locais onde surgem metástases do cancro da mama. E como o fígado é um órgão essencial, muito difícil de tratar, a metástase hepática é a principal causa de morte em doentes com cancro da mama. Assim que consegui visualizar as células adormecidas, pude finalmente tentar responder à pergunta: o que mantém essas células adormecidas?

A resposta a que cheguei foi: as células assassinas naturais. Gosto de chamá-las de "os nossos primeiros socorristas contra a invasão de células cancerígenas" porque podem matar células cancerígenas sem qualquer instrução ou ativação prévia. Os nossos resultados mostraram que, quando um animal tinha suficientes células assassinas naturais no fígado, estas controlavam a doença forçando as células cancerígenas a entrar num estado de dormência.

O que pode fazer com que o número de células assassinas que existem naturalmente num corpo possa mudar? 

Sabemos que o ambiente de cada órgão desempenha um papel no controlo do número dessas células. Especificamente, neste projeto, descobri um mecanismo através do qual uma lesão ativa células [chamadas células estreladas hepáticas] no fígado. Essas células produzem uma molécula que se liga às células assassinas naturais restringindo a sua proliferação, efetivamente limitando o seu número no tecido. 

Para além das lesões, outras condições afetam também, negativamente, as células assassinas naturais, ao ferir o fígado. Entre elas, por exemplo, estão a doença hepática não alcoólica, que é causada pela dieta dos indivíduos, ou a quimioterapia. Embora a quimioterapia seja um tratamento que pode salvar vidas e aumentar a expectativa de vida dos doentes, temos agora dados que demonstram que acaba por ser muito tóxica para certos órgãos. Portanto, infelizmente, o mesmo tratamento que pode eliminar os tumores ativos pode também, indiretamente, facilitar o crescimento metastático. Um dos caminhos de investigação que pretendo seguir é precisamente procurar formas de reverter os efeitos nocivos das lesões causadas pela quimioterapia, maximizando assim os benefícios do tratamento, sem incorrer no risco de desenvolvimento de metástases.

As vossas descobertas conduziram a possíveis caminhos terapêuticos?

Sim, na verdade, isso foi espetacular. Não só identificamos vários alvos potenciais, como conseguimos mesmo testá-los com relativa rapidez, uma vez que já existiam medicamentos aprovados contra esses alvos. Além disso, no estudo, comprovámos a eficácia de um deles, em ratinhos. Esta terapia, que se baseia na ação de uma molécula chamada IL-15, expandiu o número de células assassinas naturais, reduziu significativamente a carga metastática geral e preveniu completamente as metástases no fígado, embora não tenha eliminado a reserva de células cancerígenas dormentes. 

Extraordinariamente, este tratamento traduziu-se num aumento significativo na sobrevida do ratinho. Isto dá-nos uma validação do conceito, mostrando que as terapias destinadas a normalizar o número de células assassinas naturais podem prevenir a doença metastática. Os medicamentos com IL-15 são considerados bem tolerados e seguros, mas ainda não temos dados suficientes sobre os seus efeitos, quando são tomados de forma regular/crónica, como pode ser necessário para estes doentes.

Também estamos envolvidos num programa de investigação clínica com médicos do University Hospital of Basel, onde contamos iniciar dois ensaios clínicos. O primeiro rastreará os níveis de células assassinas naturais em doentes com cancro da mama com alto risco de desenvolvimento de metástases e examinará se esses níveis se correlacionam com o prognóstico e os resultados desses doentes. O segundo será um ensaio experimental onde aumentaremos o número de células assassinas naturais usando medicamentos com IL-15. 

Como pensa dar continuidade a este trabalho na Fundação Champalimaud? 

O objetivo mais imediato será perceber a fundo o que determina o número e o desempenho das células assassinas naturais nos tecidos. Depois, numa segunda fase, queremos estudar como as variáveis ​​às quais os organismos são expostos, como a dieta e a quimioterapia, desafiam essa imunidade. 

Inicialmente estudaremos estas questões no ratinho que representa um bom modelo animal para o estudo do cancro da mama em humanos. Ainda assim, o objetivo do laboratório é realizar investigação fundamental com a visão de chegar à sua aplicação em contexto clínico. Uma vez que a Fundação Champalimaud tem um centro clínico oncológico, estou ansiosa para trabalhar em estreita colaboração com a nossa comunidade médica para que, em conjunto, possamos acelerar o processo de transferência de conhecimento para a clínica.

Um dos aspetos mais desafiantes deste trabalho é que alguns doentes, e médicos, mostram ser céticos em relação ao estudo de algo que ainda não é doença. Mas largos anos de investigação mostraram que as metástases são extremamente difíceis de tratar e que, se esperarmos até que surjam, o tratamento pode nem sequer ser eficaz. Portanto, a minha investigação é no fundo uma proposta para uma alteração conceptual. Acredito firmemente que, ao seguir esta abordagem, temos uma oportunidade de vencer a batalha, evitando que a metástase sequer chegue a acontecer. Mas, como todos sabemos, tudo o que envolve mudança requer tempo. 

Entrevista de Liad Hollender, Science writer e editora da equipa de Comunicação, Outreach e Eventos do Centro Champalimaud.
Loading
Por favor aguarde...