“Adoro falar sobre a estrutura molecular [que descobri]”, disse Ardem Patapoutian, que lidera um laboratório no Scripps Research Institute em San Diego, enquanto apresentava o seu trabalho a uma audiência reunida na Fundação Champalimaud (FC), em Lisboa, na semana passada. “É muito fácil para mim falar sobre isso quando tenho slides em PowerPoint, mas e se estiver num restaurante ou num bar e quiser contar a alguém como funciona? Decidi fazer uma tatuagem da estrutura e quero partilhá-la com vocês.”
Em seguida, tira o casaco (“Não vou despir-me completamente, não se preocupem”, brinca), arregaça a manga da camisa do braço direito e mostra ao público uma tatuagem, centrada no cotovelo, que representa a estrutura molecular em questão. Chamou-lhe PIEZO (um nome derivado da palavra grega que significa pressão). As proteínas PIEZO são canais iónicos – ou seja, são “buracos” ou “poros” na membrana celular, que bloqueiam ou permitem a entrada de iões.
Patapoutian descobriu duas, PIEZO1 e PIEZO2, que estão presentes em muitas células do corpo e são chamadas de mecanossensores porque respondem a mudanças de pressão, esticando-se. Parecem hélices de avião.
"Queria colocar [a estrutura PIEZO] na situação exacta em que pudesse falar sobre a abertura e o fecho do poro. Então, coloquei-a no meu braço, com o cotovelo a representar o poro. Desta forma, é muito fácil para mim demonstrar como funciona. Estico o braço, o poro abre-se e os iões passam". Ao entrar na célula, os iões desencadeiam um processo que transforma os estímulos mecânicos em sinais químicos que as células – e os neurónios em particular – conseguem compreender. “Ainda não usei isto num bar”, diz Patapoutian sobre a sua tatuagem. “Mas quem sabe?”
A descoberta das moléculas PIEZO1 e PIEZO2 valeu a Patapoutian o Prémio Nobel em 2021. “Ele fez uma pergunta importantíssima e foi atrás da resposta quando não era nada óbvio que seria capaz de responder”, disse Carlos Ribeiro, investigador principal do laboratório de Comportamento e Metabolismo da FC (que possibilitou a vinda de Patapoutian a Lisboa), ao apresentar o cientista a um auditório lotado. “Mas não só resolveu um dos grandes mistérios da biologia, como a sua descoberta abriu um campo de investigação completamente novo sobre questões que nem sequer sabíamos que dependiam da mecanossensação.”
Qual foi a questão fundamental que Patapoutian colocou? Estava relacionada com o nosso sentido mais evasivo: o tacto. “Como é que sentimos?”, quis saber. Ou, mais concretamente, como é que um estímulo mecânico – um toque no ombro, por exemplo – é sentido pelo nosso corpo e transformado, dentro das nossas terminações nervosas e nas células sensoriais da pele, num sinal eléctrico que pode então ser enviado ao cérebro para ser processado?
O tacto é realmente um sentido extraordinário: podemos sentir e distinguir uma miríade de sensações diferentes, desde carícias leves a beliscões dolorosos. E, ao contrário dos nossos outros sentidos, que são localizados (nos olhos, nos ouvidos, na língua, no nariz) e que podemos suprimir à vontade (basta fechar os olhos para não vermos), o tacto está distribuído por todo o nosso corpo e não pode ser facilmente “desligado”.
O tacto também era, antes das pesquisas de Patapoutian, o sentido menos bem compreendido. Até 2010, quando fez a sua descoberta, não se conheciam mecanossensores em animais vertebrados. Patapoutian e a sua equipa mudaram isso.
“Muitos investigadores estavam a tentar encontrar canais iónicos que respondessem ao toque nos neurónios”, explicou Patapoutian. “Mas era complicado porque os neurónios não se dividem, por isso é difícil fazer neles manipulações ao nível genómico.”
No seu laboratório, em 2009, adoptaram uma abordagem completamente diferente, liderada pelo pós-doutorado Bertrand Kost, que não envolvia a manipulação genética de neurónios. “Esqueçamos os neurónios, dissemos”, recordou Patapoutian. “Vamos encontrar o mecanossensor numa linha celular que seja fácil de cultivar e dividir no laboratório.” E começaram a procurar, em culturas in vitro, uma linha celular que gerasse correntes eléctricas em resposta a toques com uma micropipeta. Depois de examinar cerca de 30 linhas celulares, encontraram uma que o fazia.
Demoraram mais um ano para encontrarem o PIEZO1. Conseguiram-no silenciando, nessa linha celular, um gene candidato após outro (com uma técnica chamada interferência de RNA) e, em seguida, testando se isso cancelava a sensibilidade das células à força mecânica. Tinham cerca de 300 genes candidatos em vista e acertaram em cheio com o candidato 72, quando viram, na linha celular knockout (sem o gene), uma redução maciça nas correntes activadas mecanicamente. Finalmente, clonaram o gene PIEZO1 e colocaram-no em células que normalmente não respondiam ao toque, para ver se isso era suficiente para induzir a sua sensibilidade a estímulos mecânicos. Era.
Isso também levou à descoberta de um “gene irmão”, o PIEZO2. Juntas, as proteínas que esses genes codificam — os canais iónicos que ficam nas membranas celulares, parecem hélices e se esticam sob estímulo mecânico — são responsáveis não apenas pela sensação de tacto com a qual estamos mais familiarizados, que tem origem na pele, mas por outros dois aspectos, igualmente vitais, do sentido do tacto: a propriocepção e a interocepção.
A propriocepção é o que nos permite sentir, a cada instante, a posição do nosso corpo no espaço, mesmo quando fechamos os olhos. As pessoas com deficiência do gene PIEZO2 não só perdem o sentido do tacto, como também têm dificuldade em ficar em pé, andar com os olhos fechados ou coordenar os seus movimentos. Quanto à interocepção, ela permite-nos, por exemplo, sentir o nosso coração a bater ou saber que a nossa bexiga está cheia.
PIEZO2 demonstrou desempenhar um papel fundamental na propriocepção, e sabe-se hoje que os canais iónicos PIEZO1 e PIEZO2 regulam processos fisiológicos importantes, incluindo a pressão arterial, a respiração e o controlo da bexiga – que são diversos aspectos da interocepção.
Além disso, também têm sido realizadas pesquisas sobre o papel de PIEZO1 em muitos tipos de células não neuronais também conhecidas por responder a forças mecânicas. Em particular, foi demonstrado pela equipa de Patapoutian, e outros, que o PIEZO1 desempenha papéis importantes no desenvolvimento do sistema cardiovascular, na formação óssea e nos glóbulos vermelhos.
Ainda mais surpreendente, como explicou Patapoutian, a sua equipa mostrou recentemente que os genes PIEZO são expressos nas pontas das raízes das plantas. “Os genes PIEZO são expressos precisamente aí; e quando os eliminamos na Arabidopsis [uma pequena planta com flores, da família de espécies como a couve e a mostarda], vemos diferenças claras na capacidade de a planta penetrar superfícies duras. Nas plantas sem PIEZO, as raízes não conseguem penetrar no solo duro, por isso contornam-no. As plantas utilizam os canais iónicos PIEZO para detectar a dureza do solo.”
Uma das potenciais aplicações médicas da investigação de Patapoutian poderá ser a descoberta de tratamentos para a dor crónica e, em particular, para a “alodínia táctil”, uma perturbação neuropática que tornam dolorosos até os toques inofensivos. “Muitas pessoas que sofrem de dor neuropática sentem isto constantemente e não existem medicamentos eficazes para a tratar”, disse Patapoutian. "Nós mostrámos que, no ratinho, a alodínia táctil depende completamente de PIEZO2." Por outro lado, uma experiência simples realizada em pessoas sem canais PIEZO2 funcionais deu resultados semelhantes, o que significa que os resultados em animais poderão ser transpostos para os seres humanos.
No entanto, acrescenta Patapoutian, há muitos desafios para se conseguir fazer a translação para a clínica. “Um deles é que não podemos administrar aos doentes, por via oral, compostos que bloqueiem o PIEZO2, porque isso também lhes tiraria o sentido do tacto e a propriocepção", explicou. “Mas estamos a desenvolver compostos para aplicação localizada, tópica [ou seja, sob forma de creme], na esperança de que possam ser úteis em algumas indicações.”
Patapoutian tem uma ligação pessoal singular com Portugal: o primeiro financiamento que recebeu, quando tinha 17 anos – para estudar na Universidade Americana de Beirute após ter acabado o ensino secundário – veio nada mais, nada menos, do que da Fundação Gulbenkian. Mostra com orgulho o formulário que preencheu na altura. “Socioeconomicamente, foi muito difícil para mim poder ir para a faculdade, e as bolsas da Gulbenkian e, mais tarde, de outras fundações e agências governamentais, ajudaram muito na minha educação", disse.
No final da sua palestra, Patapoutian descreveu-se assim: “Um imigrante arménio do Líbano, que inicialmente foi financiado por uma agência portuguesa, estudou nos EUA, ganhou o Nobel e agora volta a Lisboa e está a adorar”. E acrescentou: "É um círculo que se fecha.”
Texto de Ana Gerschenfeld, Helath&Science Writer da Fundação Champalimaud.