08 Maio 2023

O nosso objectivo é sempre remover a doença toda

Actualmente, 80% das doentes com cancro do ovário são diagnosticadas já em estádios avançados da doença. Mas a situação poderá vir a mudar num futuro talvez não assim tão longínquo, graças nomeadamente à investigação a decorrer na Fundação Champalimaud.

Cancro do Ovário - O nosso objectivo é sempre remover a doença toda
Entrevista a Henrique Nabais e Filipa Silva por ocasião do Dia Mundial do Cancro do Ovário

O cancro do ovário é o oitavo cancro mais frequente e a sétima causa de morte por cancro nas mulheres. Em Portugal, em 2020, foram diagnosticados cerca de 560 novos casos, tendo-se verificado, no mesmo ano, 408 mortes. Trata-se portanto de um cancro relativamente raro, mas altamente mortal. 
Por ocasião do Dia Mundial do Cancro do Ovário, que se celebra a 8 de Maio, Henrique Nabais (H.N.) e Filipa Ferreira da Silva (F.S.), Diretor e oncologista médica da Unidade Multidisciplinar de Ginecologia Oncológica da Fundação Champalimaud, respetivamente, falam deste temível cancro e, em particular, na necessidade de desenvolver um método de rastreio eficaz e um programa de referenciação e tratamento para salvar mais vidas.

O cancro do ovário é o mais mortal dos cancros ginecológicos. Porquê?

F.S.: Pelo facto de, comparativamente com outros cancros ginecológicos, a maioria das mulheres ser diagnosticada em estádios avançados da doença. Isto acontece porque não existe nenhum método de rastreio validado para o diagnóstico precoce do cancro do ovário. Por outro lado, nos estádios iniciais, os sintomas e sinais são muito inespecíficos e semelhantes aos que ocorrem em muitas patologias completamente benignas. Por esta razão, em cerca de 80% dos casos o diagnóstico é realizado em estádios avançados.

H.N.: E isso não tem a ver com má prática médica, tem a ver com o facto de, como disse a Filipa, não termos um bom método de rastreio – no cancro do colo do útero, por exemplo, temos a citologia ou a pesquisa do HPV [vírus do papiloma humano], no cancro da mama temos a mamografia. Há vários projectos de investigação na área do cancro do ovário, nomeadamente na Fundação Champalimaud, mas até agora nenhum que tenha sido validado. Por outro lado, os sintomas como o aumento do volume abdominal, o incómodo ou a dor abdominal, ou ainda o enfartamento pós-prandial, são muito pouco específicos. É frequente as mulheres referirem este tipo de queixas, muitas vezes associadas à obstipação crónica. Mas na verdade, não são valorizadas nem pelas mulheres, nem pelos médicos.

Mas trata-se de mulheres que não costumam ir ao ginecologista?

H.N.: Não necessariamente. Só se houver um tumor do ovário volumoso é que o ginecologista o consegue palpar e, nesse caso, já pode haver um quadro de cancro do ovário muito extenso, por vezes inoperável. Este facto explica que algumas doentes tenham tido uma avaliação sem alterações numa consulta de ginecologia recente. É frequente isso acontecer, até porque na ecografia os ovários podem ter um aspecto normal e daí a três meses termos um quadro inoperável. É a razão pela qual nós não usamos a ecografia como método de rastreio.

Existem vários tipos de cancro do ovário?

F.S.: Falando dos mais comuns, que são os cancros ditos epiteliais dos ovários, existem quatro tipos principais. Destes, os mais frequentes são os cancros serosos de alto grau (que são agressivos e de crescimento rápido), seguidos pelos endometrióides, os de células claras e os mucinosos. Os últimos dois são bastante menos frequentes, e quando diagnosticados em fases avançadas são mais resistentes à quimioterapia.

Há uma componente genética no cancro do ovário?

F.S.: Sabemos hoje que cerca de 20% dos cancros do ovário, e em particular os cancros serosos de alto grau, estão associados a mutações, nomeadamente nos genes BRCA1 e BRCA2, que estão também muito associadas à ocorrência de cancro da mama. Hoje em dia, a maior parte das mulheres diagnosticadas com cancro do ovário tem indicação para o estudo destas mutações. A sua presença tem implicações terapêuticas importantes com repercussão prognóstica.

H.N.: Queria acrescentar que os familiares das doentes com cancro do ovário e com mutação identificada têm indicação para efectuar o estudo genético. Se a mutação for identificada, deve ser proposto um plano de vigilância diferente da população geral, para além de uma eventual cirurgia redutora de risco.

Se ainda não há método de rastreio, como se detecta o cancro do ovário?

H.N.: Na população geral não está recomendado realizar qualquer rastreio, mas sim estar atento às novas queixas que surgem ou cujo padrão se altera, e realizar a sua avaliação clínica adequada e atempada. Nas mulheres com mutações BRCA1 ou BRCA2, o que está recomendado é uma ecografia ginecológica e a pesquisa de um marcador tumoral, o CA125, com uma periodicidade semestral. Estes exames, apesar de úteis, não fazem o diagnóstico – devido à sua baixa sensibilidade –, obrigando em caso de suspeita à realização de exames complementares de diagnóstico.

O que é a cirurgia redutora de risco?

H.N.: O que estamos a propor às mulheres que têm uma mutação BRCA1 ou BRCA2 e que ainda não tiveram cancro do ovário é a remoção dos ovários e das trompas a partir de uma certa idade – de uma forma geral, a partir dos 35 anos de idade. Esta cirurgia reduz o risco de ter cancro do ovário em cerca de 70%. No entanto, só deve ser realizada quando a mulher já tem todos os filhos que desejava ter e quando for percepcionada como benéfica. Nas mulheres que não pretendem remover os ovários e as trompas, propomos a vigilância já referida.

Trata-se de uma operação complicada? 

H.N.: Não. Geralmente, é uma cirurgia laparoscópica que implica 12 a 24 horas de internamento com uma convalescença rápida e, na maioria das vezes, simples. Um dos problemas, penso que o mais relevante, associado a esta cirurgia redutora de risco é o facto de a mulher ficar em menopausa. Nestes casos, a terapêutica hormonal da menopausa pode ser utilizada pelo menos durante cinco anos. Também constatamos que as mulheres que têm uma história próxima de cancro do ovário, por exemplo, na mãe ou numa irmã, aceitam mais facilmente esta cirurgia e têm muito menos queixas do que as outras. Tem a ver com a forma como cada uma valoriza o risco de ter ou não ter cancro.

Quais são os tratamentos do cancro do ovário?

F.S.: Globalmente o tratamento inicial é multimodal, incluindo cirurgia e terapêutica sistémica (quimioterapia). O tratamento de primeira linha que propomos a uma mulher diagnosticada com cancro do ovário é a cirurgia, pelo que a primeira decisão, sempre num contexto multidisciplinar, tem que envolver um ginecologista oncológico para avaliar se a doente é candidata à cirurgia. Nos casos em que a doença não é passível de remoção completa, devemos iniciar o plano terapêutico com quimioterapia. Algumas doentes são candidatas a terapêutica de manutenção após a quimioterapia.

O que é a cirurgia de estadiamento?

H.N.: Nos estádios iniciais, efectuamos uma cirurgia dita de estadiamento – isto é, removemos o útero, os ovários, as trompas, os gânglios pélvicos e para-aórticos e ainda o chamado grande eplíploon. Isto tem como objectivos principais avaliar a extensão da doença, a sua remoção completa e definir a necessidade de terapêutica adjuvante e respectivo prognóstico.

No entanto, em mais de 80% dos casos, temos uma doença avançada. Nestes casos, já não realizamos uma cirurgia de estadiamento, mas sim uma cirurgia de citorredução, que só tem valor terapêutico se conseguirmos remover toda a doença visível.

Quando isso não é possível, iniciamos o tratamento por quimioterapia e reavaliamos periodicamente a exequibilidade da cirurgia de citorredução, agora denominada de intervalo. Na cirurgia de citorredução de intervalo, propomos, na maioria das vezes, quimioterapia durante a cirurgia, denominada de HIPEC (Hyperthermic IntrapPEritoneal Chemotherapy): após a remoção completa da doença, a quimioterapia é aplicada directamente na cavidade abdominal de forma a eliminar as células cancerosas residuais, microscópicas. Há poucos centros em Portugal a fazer HIPEC, a Fundação Champalimaud é um deles. 

Pode ser ainda necessário fazer quimioterapia após a cirurgia. O nosso objectivo é sempre remover a doença toda.

Qual é a taxa de sucesso destes tratamentos?

F.S.: Em termos de sobrevivência global a cinco anos, os últimos estudos mostram alguma melhoria, 40 a 45% das mulheres sobrevivem cinco anos. Nos estádios iniciais, I e II, a sobrevivência a cinco anos já se aproxima dos 80-85%. Nos estádios avançados, cerca de 70% das doentes irá recidivar nos primeiros cinco anos.

Há tratamentos inovadores do cancro do ovário?

F.S.: Há. Nos últimos anos, a grande revolução terapêutica para as mulheres com cancro do ovário foi a introdução dos chamados inibidores da PARP (olaparib®, niraparib®) nos algoritmos terapêuticos. Trata-se de uma terapêutica oral utilizada no contexto de manutenção, quer na primeira linha, quer na recidiva. Os dados disponíveis sobre a utilização destes medicamentos demonstram um aumento significativo do tempo livre de progressão da doença. 

Existem também múltiplos ensaios clínicos a decorrer com tratamentos promissores, que poderão vir a aumentar quer a sobrevivência, quer a qualidade de vida das doentes. 

A Unidade Multidisciplinar de Ginecologia Oncológica está envolvida em projectos de investigação?

F.S.: Sim. Sendo o cancro do ovário o tumor ginecológico mais letal, estamos muito motivados a participar e desenvolver projectos nesta área. Participamos em múltiplos ensaios clínicos e em projectos da nossa iniciativa. 

E especificamente na área do rastreio do cancro do ovário?

H.N.: Como já foi referido pela Filipa, essa é uma área de interesse da nossa Unidade. Temos em curso um projecto em colaboração com o Doutor Pedro Vaz, investigador da Fundação Champalimaud [na Unidade do Pulmão - ver aqui], que tem como objectivo identificar compostos específicos do cancro do ovário no ar exalado pelos pulmões. Os resultados, até agora, parecem muito promissores, não só no rastreio do cancro do ovário mas também do endométrio e do colo do útero. 

Estamos também envolvidos num projecto de investigação sobre um potencial método de rastreio do cancro do ovário a partir de produtos contidos na urina, em colaboração com o Doutor João Lagarto, coordenador da Plataforma de Biofotónica da Fundação Champalimaud [aqui].

Entrevista por Ana Gerschenfeld, Health&Science Writer da Fundação Champalimaud.
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