06 Novembro 2025

Como as Colaborações Científicas Podem Ajudar a Compreender Melhor o Cérebro e o Corpo

É bastante intuitivo pensar que o cérebro controla o nosso corpo, mas é menos óbvio imaginar que o corpo também pode influenciar o cérebro. Este ensaio, dos investigadores principais na Fundação Champalimaud, Carlos Ribeiro e Albino J. Oliveira-Maia, guia-nos por algumas das interações cérebro-corpo que são cruciais para o funcionamento normal de todos os organismos vivos.

How Scientific Collaborations Can Help Better Understand the Brain and the Body

Historicamente, os cientistas que estudam o cérebro, como neurocientistas e psicólogos, trabalham separadamente daqueles que estudam o corpo, como endocrinologistas e fisiologistas. A investigação focada em como o sistema nervoso interage com o corpo tem crescido, mas, como diz Carlos Ribeiro, “costuma parar aí, raramente passando do pescoço para chegar novamente ao cérebro”. Já os neurocientistas tendem a concentrar-se nas funções superiores do cérebro, muitas vezes sem considerar como os sinais corporais as podem influenciar.

Num ensaio recentemente publicado na Current Biology, Carlos Ribeiro, biólogo e neurocientista, e Albino J. Oliveira-Maia, psiquiatra e neurocientista, juntaram-se para discutir porque é que este diálogo entre o cérebro e o corpo é essencial para o funcionamento normal do organismo, garantindo o bem-estar e a capacidade de resposta face a potenciais perturbações que surgem quando algo não corre bem.


Das Moscas aos Humanos: Comparando Modelos

Aproveitando as suas formações interdisciplinares, Oliveira-Maia e Ribeiro recorrem a estudos realizados em moscas-da-fruta, ratinhos e humanos para explorar como os sinais corporais moldam as respostas cerebrais e o comportamento.

“Diferentes sistemas têm pontos fortes distintos”, explica Ribeiro. “Podemos aproveitar essas forças bem como identificar o que é comum, e isso é normalmente a melhor abordagem para compreender os mecanismos usados e aplicá-los mais tarde, nomeadamente na clínica.” Oliveira-Maia acrescenta: “Humanizamos sempre a investigação que fazemos, mesmo quando trabalhamos com moscas, por isso, ter diferentes modelos e perspetivas é algo que valorizo muito.”

Para Ribeiro, os invertebrados, como as moscas-da-fruta, oferecem vantagens claras: “Permitem realizar muitos tipos de experiências e ser extremamente preciso do ponto de vista mecanístico.”

Para ilustrar, os autores seguem uma lógica em cascata. No ensaio, começam por descrever como o estado nutricional de uma mosca influencia o que come e onde procura alimento. Moscas com fome tendem a regressar a sítios onde, no passado, já encontraram comida, em vez de explorarem novos locais, o que mostra que os sinais corporais moldam a forma como o cérebro usa memórias e toma decisões, influenciando as estratégias de procura de alimento.

Os estudos comparativos permitem depois avançar para organismos mais complexos, como os ratinhos, e testar ideias semelhantes. Tal como as moscas, os ratinhos apresentam alterações na atividade cerebral quando têm fome ou sede. Estes animais também aprendem a associar certos sabores a uma maior ingestão de açúcar, demonstrando uma vez mais que os sinais do corpo orientam as preferências comportamentais.

Já os humanos trazem outra vantagem: podem descrever o que sentem. Oliveira-Maia explica que as ideias testadas em moscas ou ratinhos podem oferecer pistas sobre o comportamento humano. A procura de alimento de uma mosca, por exemplo, pode ser comparada a “alguns elementos de tomada de decisão e assunção de risco nos humanos, ligados tanto ao controlo da ingestão de alimentos como ao desenvolvimento de perturbações como a obesidade ou a anorexia.”

Para Oliveira-Maia, estas semelhanças são reconfortantes: “Estou a olhar para um fenómeno que existe nas moscas e encontro nele elementos conceptuais que se traduzem bem para os humanos, e isso é uma grande fonte de conforto. Vai resolver todos os problemas do mundo? Creio que não. Mas oferece uma estrutura muito interessante para o avanço do conhecimento, que exige colaboração e pensamento coletivo.” E, como resume Ribeiro, “independentemente do que faças, vais sempre precisar de comparar, e acho que isso é conceptualmente muito interessante.”
 

O Desafio de Estudar as Interações Cérebro-Corpo

Embora o campo das interações cérebro-corpo tenha sido, durante muito tempo, negligenciado, o interesse está agora a crescer rapidamente. A sua natureza interdisciplinar torna-o simultaneamente entusiasmante e desafiante, especialmente em termos de financiamento e publicação, pois cruza múltiplas áreas científicas. A tecnologia é outro obstáculo. Em neurociência, as ferramentas para o estudo do cérebro avançaram enormemente, mas aplicar o mesmo nível de precisão ao resto do sistema nervoso, isto é, aos sinais corporais fora do cérebro, continua a ser muito complexo.

Além disso, como explica Oliveira-Maia, “os sistemas sensoriais externos [visão, audição, tato] foram tradicionalmente o foco da neurociência”, porque são mais fáceis de observar e descrever. Já as sensações internas, o que o autor descreve como “perspetiva interoceptiva das sensações e dos sinais sensoriais”, são mais difíceis de articular. Embora não consigamos descrever facilmente como sentimos a tensão arterial ou os níveis de energia, esses sinais estão constantemente a informar o cérebro, ajudando a manter o corpo a funcionar. Compreender estes processos é especialmente importante quando algo falha. “Como psiquiatra, tenho um interesse particular em compreender as circunstâncias em que as coisas deixam de funcionar de forma harmoniosa, como acontece num estado de saúde normal”, afirma Oliveira-Maia.

As interações entre o cérebro e o corpo podem influenciar tanto a saúde física como a mental. A depressão, por exemplo, pode alterar o comportamento e aumentar a propensão para correr riscos, o que, por sua vez, pode elevar o risco de doenças cardíacas ou diabetes. Por outro lado, doenças como o cancro podem desencadear perturbações emocionais, como a depressão. Cada vez mais dados apontam para “elementos biologicamente mensuráveis, especialmente ligados ao sistema imunitário”, que poderão servir de ponte entre estas condições.

Mais investimento nesta área ajudaria os investigadores a desvendar estas ligações e a aprofundar a nossa compreensão acerca das interações entre o cérebro e o corpo.


A Colaboração como Força Motriz

Tal como a ligação entre o cérebro e o corpo, este ensaio é também fruto de uma colaboração. Ribeiro, biólogo que trabalha com moscas-da-fruta, e Oliveira-Maia, psiquiatra que estuda humanos, vêm de contextos muito distintos, mas partilham um objetivo comum: compreender como o corpo influencia o cérebro e vice-versa.

Oliveira-Maia recorda que o projeto começou quando Ribeiro o desafiou a escrever este artigo em conjunto. “Fiquei muito feliz por ele o ter feito”, diz, pois isso desencadeou conversas profundas e revelou um inesperado terreno comum. “Demorámos um mês só para decidir sobre o que realmente iríamos escrever, porque não parávamos de discutir diferentes perspetivas”, conta Ribeiro.

A amizade entre ambos ajudou. “Fico muito feliz por poder chamar o Carlos de amigo”, diz Oliveira-Maia, “e isso torna a conversa mais fácil. Não se trata apenas de encontrar pontos em comum num documento como este, nem apenas de ciência e linguagem, trata-se também das pessoas.” Apesar das diferenças de terminologia, a curiosidade partilhada fez com que a colaboração fluísse naturalmente. Entre almoços e corridas, perceberam que estavam “interessados nas mesmas questões, embora tentassem respondê-las de formas muito diferentes.”

Ribeiro vê estas colaborações como essenciais, comparando-as a um circuito contínuo: os estudos em humanos inspiram perguntas para modelos animais, e as descobertas em animais frequentemente informam a investigação clínica. “É uma rede que tem de ser construída”, afirma. “É preciso discussão e que todos trabalhem juntos. É preciso pensar de forma interdisciplinar e ter coragem de explorar áreas onde talvez não sejamos especialistas.”

Oliveira-Maia concorda que a verdadeira colaboração exige esforço. “Temos de dar esse passo adicional, dedicar tempo e energia mental para criar algo que se torne um espaço partilhado e que reflita as perspetivas individuais de ambos”, explica. Usa o exemplo de um diagrama de Venn: “não basta encontrar a interseção, é preciso usá-la ativamente e ajudá-la a crescer”.
 

Um Olhar Sobre o Futuro

Esta colaboração tem sido inspiradora para ambos os investigadores, moldando as suas futuras linhas de investigação. Planeiam continuar a trabalhar juntos, nomeadamente num projeto que liga o mundo culinário à investigação fundamental, explorando como os alimentos ricos em proteínas afetam o cérebro humano.

Ao refletir sobre o processo de escrita, Ribeiro observa que o verdadeiro progresso “não vem do clínico nem do cientista isoladamente, mas do trabalho conjunto, com respeito mútuo pelo conhecimento de cada um.” Como acrescenta Oliveira-Maia, é “a oportunidade de trabalhar e pensar em conjunto” que faz com que esta parceria seja bem-sucedida.

Esta colaboração encarna o espírito da Fundação Champalimaud, ilustrando na perfeição como a cooperação entre investigadores fundamentais e clínicos pode expandir a nossa compreensão sobre o funcionamento dos organismos. Criar pontes entre estas duas áreas e perspetivas é crucial para aumentar o conhecimento sobre as interações cérebro-corpo e desenvolver melhores abordagens para tratar perturbações que possam estar relacionadas com essas mesmas interações.
 

Artigo original: aqui
 

Texto de Ana Rita P. Mendes, Communication e Events Manager da Equipa de Comunicação, Eventos e Outreach da Fundação Champalimaud.
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