08 Fevereiro 2024

Dormir pouco, acordar durante a noite ou deitar-se tarde, aumentam o risco de mortalidade?

A existência de dispositivos de medição do movimento de tipo Smartwatch e a criação recente de um gigantesco repositório de dados médicos, biológicos e de estilo de vida permite começar a avaliar de forma quantitativa o impacto dos padrões de sono no risco de mortalidade prematura das pessoas.

Dormir pouco, acordar durante a noite ou deitar-se tarde, aumentam o risco de mortalidade?

Há já algum tempo que a IARC (International Agency for Research on Cancer), que é o organismo mundial que define os agentes cancerígenos, aponta o trabalho nocturno (por turnos) como um possível agente cancerígeno. 

Mas o que dizer das pessoas em geral, que sem ter um emprego deste tipo, dormem pouco ou deitam-se tarde demais, ou têm um sono de baixa “qualidade”, acordando repetidas vezes durante a noite? Será que essas pessoas também têm riscos acrescidos de contrair doenças cardiovasculares ou cancro e apresentam assim uma maior probabilidade de morrer prematuramente do que as que as pessoas cujos padrões de sono são considerados mais saudáveis?

Numa abordagem inovadora, um estudo publicado há umas semanas na revista científica Sleep traz uma análise da questão baseada em dados quantitativos obtidos com dispositivos usados no pulso junto de uma população de dezenas de milhares de pessoas.

O primeiro autor do estudo é Pedro Saint-Maurice. Este investigador português esteve os últimos sete anos a trabalhar no National Cancer Institute dos National Institutes of Health (NIH, é a agência de investigação biomédica do Governo Federal norte-americano). 

“A missão dos cientistas do NIH é fazer investigação biomédica inovadora para informar a população norte-americana e promover o desenvolvimento de ciência de excelência” explica este investigador. “Eu faço investigação em epidemiologia da actividade física, sobre o risco de cancro e outras doenças crónicas em função da duração, da qualidade, e do timing da actividade física. Tento perceber também o impacto do exercício físico em pessoas diagnosticadas com cancro. Recentemente, comecei também a estudar o sono, outro factor muito importante para um estilo de vida saudável.” 

Em Outubro de 2023, Pedro Saint-Maurice integrou a equipa de investigação da Unidade de Mama da Fundação Champalimaud, com o objectivo de investigar e definir recomendações de atividade física e sono para os doentes oncológicos, tal como já existem recomendações em relação à dieta e ao exercício físico em populações não diagnosticadas com cancro.

Avaliar o sono de forma objectiva

A finalidade do estudo agora publicado era perceber como a questão do sono pode influenciar a saúde. Há já muitos anos que se fazem estudos sobre a associação sono/saúde. Só que estes têm sido essencialmente baseados em questionários de auto-avaliação preenchidos pelos participantes acerca dos seus próprios padrões de sono. Ora, auto-reportar o seu sono não é fácil: os voluntários comunicam, na realidade, o tempo que passam na cama, o que não corresponde necessariamente ao seu tempo de sono efectivo. 

Mas agora, graças a dispositivos wearable de medição dos movimentos corporais de tipo smartwatch, tornou-se possível começar a avaliar muito mais objectivamente o impacto dos padrões de sono na saúde.

“No mundo da epidemiologia, uma das perguntas que se coloca é como é que os padrões de sono podem influenciar a saúde e o aparecimento de doenças a longo prazo”, explica Pedro Saint-Maurice. “Nós usamos dados de mortalidade porque a mortalidade é um indicador de doença a nível geral e é portanto muito útil para estudar este tipo de questões.”

UK Biobank: um manancial para a investigação

Uma outra limitação importante é que os estudos anteriores, apesar de serem muito valiosos, têm incidido sobre populações de dimensão reduzida (uns milhares de participantes). “Esses estudos não permitiam analisar, por exemplo, se as correlações entre sono e mortalidade observadas eram igualmente válidas para homens e mulheres, ou se só se aplicavam aos adultos mais velhos e não aos mais novos”, faz notar Pedro Saint-Maurice.

Agora, isso também mudou, com a criação recente, no Reino Unido, do UK Biobank, um gigantesco repositório de dados médicos, biológicos e de estilo de vida, que foi estabelecido para fins de investigação.

O UK Biobank contém actualmente os dados de meio milhão de adultos, dos quais 100 mil se disponibilizaram a usar no pulso, durante sete dias, um dispositivo equivalente a um smartwatch para medir as características do seu sono. Para mais, esses voluntários também aceitaram ser seguidos ao longo de vários anos, através da ligação entre o UK Biobank e o sistema de saúde britânico. Um manancial de informação ficou assim disponível para os investigadores do mundo inteiro.

“A existência do UK Biobank mudou radicalmente a situação”, salienta Pedro Saint-Maurice. “Pela primeira vez, tornou-se possível estudar as questões epidemiológicas de uma forma muito mais precisa. O UK Biobank é de facto a maior base de dados médicos com dados de wearables e permite responder a perguntas de estilo de vida, incluindo em relação ao sono. Conseguimos aplicar algoritmos desenvolvidos pela comunidade científica para identificar quando é que uma pessoa está a dormir ou acordada ou se a pessoa se mexe muito à noite durante o sono – e até a que horas a pessoa adormeceu.”

Três características do sono 

Nos estudos da relação sono/mortalidade havia outra limitação ainda: até aqui, estes olhavam para a relação entre sono e mortalidade apenas em termos da duração do sono, mas não em termos do timing do sono – ou seja, das horas a que a pessoa ia para a cama e adormecia. E mais: a própria qualidade do sono (que é medida através da sua continuidade) também não tinha sido muito investigada. 

“O que nós fizemos [no estudo da Sleep] foi tentar perceber mais a fundo o impacto destas três características do sono”, diz Pedro Saint-Maurice. “A nossa hipótese era que quando a duração do sono era mais curta, o sono intermitente (que está relacionado com a qualidade do sono) e o timing mais tardio, isso estava associado a um risco acrescido de morte. Foi essa hipótese que decidimos testar.

Segundo escrevem os autores, os dados que utilizaram na sua análise dizem respeito a 88.282 adultos, com idades entre os 40 e os 69 anos, que usaram um wearable de pulso durante sete dias (como já foi referido) entre 2013 e 2015. O wearable usado inclui um acelerómetro triaxial e é uma ferramenta de captura e análise de movimentos em três dimensões. 

Os dados desta “actigrafia” (método não invasivo de monitorização dos ciclos humanos de repouso/actividade) foram processados para gerar estimativas da duração e das outras características do sono – em particular, a frequência com que a pessoa esteve acordada à noite durante cinco minutos ou mais, e ainda o ponto médio entre o início do sono e o despertar. 

Esses dados foram cruzados com os dados de mortalidade durante o seguimento dos participantes (que se prolongou até 31 de outubro de 2021) e analisados com modelos estatísticos de forma a quantificar as associações entre sono e mortalidade. Durante esses cerca de sete anos, ocorreram quase 3000 mortes (das quais 1700 mortes por cancro e 586 mortes por doença cardiovascular). 

Dormir menos de seis horas por noite é mau para a saúde

“Os nossos resultados mostram que uma duração de menos de seis horas de sono por noite está significativamente associada a um maior risco de mortalidade – por todas as causas, por cancro e doença cardiovascular”, diz Pedro Saint-Maurice. Mais precisamente, dormir apenas cinco horas por noite, em vez de sete, está associado a um risco 29% maior de mortalidade por todas as causas. 

Também o timing tem um impacto: as pessoas que se deitaram muito tarde ou acordaram muito cedo no nosso estudo apresentaram um risco 20% maior de mortalidade, por todas as causas, quando comparadas com as pessoas que adormeceram e acordaram a horas menos extremas. 

“Isto é muito interessante”, acrescenta o investigador, “porque sabemos que os horários tardios de sono apresentam um risco aumentado para uma série de doenças metabólicas e vários tipos de cancro, sendo o da próstata e mama os dois tipos sobre os quais mais se tem falado.”

A principal hipótese relativa à influência do timing do sono tem sido, em particular, a ideia de que os horários de deitar tardios poderão contribuir para a desregulação do ciclo de produção de melatonina, a hormona que nos “prepara” para o sono e cujos níveis aumentam ao cair da noite.“A melatonina é um supressor de tumores e é daí que vem a hipótese de que o risco aumentado de cancro poderá ser devido à desregulação desta hormona”, explica Pedro Saint-Maurice. 

Relativamente ao acordar demasiado cedo de manhã, poderá ser a produção de outras hormonas, como o cortisol (que também apresenta ciclos bem definidos de 24 horas ou “circadianos”), a ficar perturbada. “De uma forma geral, a alteração dos horários de sono interfere com os padrões destas hormonas e tem impacto em vários processos metabólicos”, nota Pedro Saint-Maurice. “O mais importante é que os horários do sono podem interferir com o alinhamento do organismo com a luz do dia, porque sabemos que a luz do dia é o principal organizador dos nossos ciclos circadianos.” Os timings de sono extremos desalinham os nossos ritmos biológicos ao desalinharem os nossos padrões de exposição à luz do dia.

“Esta interpretação dos nossos resultados ainda é muito exploratória”, ressalva contudo o investigador. “O impacto da duração do sono é o mais bem estabelecido. Mas na questão do timing, e nomeadamente a do acordar mais cedo ou mais tarde, acho que ainda temos de perceber de que forma é que a relação com a luz do dia poderá fazer aumentar, em particular, o risco de cancro”, admite Pedro Saint-Maurice. 
Por último, relativamente aos indicadores da qualidade do sono, como a frequência dos despertares ao longo da noite, o presente estudo não demonstrou estarem associados a riscos acrescidos de mortalidade – ao contrário do que concluiu uma série de estudos anteriores. “Não encontramos nenhuma associação”, diz Pedro Saint-Maurice, “entre esse tipo de indicadores – maior movimento durante a noite, ou períodos em que a pessoa esteve acordada – e os riscos de doença e de morte”, salienta.

Recomendações para já?

Podem, a partir dos resultados deste estudo, ser extraídas recomendações práticas para hábitos de sono saudáveis? Pelo menos uma pode: “Certifiquem-se que dormem entre sete e nove horas por noite, tal como recomenda actualmente a National Sleep Foundation”, responde Pedro Saint-Maurice. “Nós confirmámos que isso é extremamente importante para a saúde.” 
Como segundo ponto, o investigador recomenda atenção ao timing – o momento em que o sono acontece. “Parece ser um factor importante para se manter uma vida saudável. Por enquanto não está confirmado, não sabemos qual seria o timing ideal. Vai ser preciso mais trabalho para o determinar. Sabemos, sim, que há uma associação e que o timing é importante, mas não conseguimos ainda ser mais específicos.”
Pedro Saint-Maurice não deixa de lembrar, para concluir, que os doentes oncológicos podem sofrer alterações de sono devido aos tratamentos a que são submetidos. “Por exemplo, a quimioterapia pode alterar os padrões de sono”, afirma. “E nós devemos pensar em como podemos ajudar, através de intervenções específicas, a melhorar os padrões de sono dos doentes oncológicos”.

Artigo científico aqui.

Texto por Ana Gerschenfeld, Health & Science Writer da Fundação Champalimaud.
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