09 Dezembro 2025
Entre o laboratório e o doente
20 Anos, 20 Histórias
— Ligar investigação e clínica com Maria João Cardoso
09 Dezembro 2025
20 Anos, 20 Histórias
— Ligar investigação e clínica com Maria João Cardoso
Quando Maria João Cardoso chegou à Fundação Champalimaud (FC), em 2011, o edifício estava praticamente vazio. “Quase não havia ninguém”, recorda. “Era uma instituição fantasma que foi ganhando vida aos poucos”.
Na altura, a sua equipa cirúrgica ainda operava no Hospital da Cruz Vermelha de Lisboa, enquanto estava a ser construído o Centro Clínico Champalimaud. “Já atendíamos doentes e fazíamos consultas na FC, mas as instalações para internamento e os blocos operatórios para doentes com cancro da mama só ficaram disponíveis por volta de 2016. Éramos apenas uns dez no início, e éramos como uma família. Agora somos cerca de 60! Normalmente, na carreira, vai-se de um departamento hospitalar para outro – não se constrói um de raiz!”.
Aqueles primeiros dias foram repletos de improvisação. “Nem sequer tínhamos uma cantina. O Darwin’s Café, o restaurante do local, ainda não estava aberto ao público, por isso costumávamos trazer comida de casa e sentavámo-nos nas elegantes mesas de lá, comendo juntos como se fosse a nossa própria cozinha.”
Enquanto coordenadora da Equipa Cirúrgica da Unidade da Mama, Maria João ajudou a desenvolver a característica mais marcante da unidade: o seu modelo clínico integrado. “Na maioria dos hospitais, as doentes com cancro da mama transitam entre diferentes departamentos – cirurgia, oncologia, radiologia – que se reúnem periodicamente para discutir cada caso”, explica. “Aqui, reunimos especialistas em torno da paciente, e eles trabalham lado a lado como parte da mesma equipa. Nós adaptamo-nos à paciente, e não o contrário”.
“Ainda temos espaço para melhorar”, acrescenta. “O ideal seria que a paciente pudesse consultar o cirurgião e a enfermeira numa única consulta, em vez de duas visitas separadas. Os hospitais geralmente otimizam o tempo dos médicos, não dos pacientes – mas aqui, tentamos fazer o oposto”.
Este modelo centrado no doente foi entretanto adotado noutras unidades do FC, e a mesma mentalidade também orienta a sua investigação. O seu trabalho de longa data sobre os resultados estéticos e psicológicos da cirurgia do cancro da mama ganhou novos horizontes em 2022 com o lançamento do projeto CINDERELLA, financiado pela Comissão Europeia. Utilizando inteligência artificial, o projeto permite que as pacientes visualizem os resultados estéticos de diferentes técnicas cirúrgicas antes da operação.
“A maioria das doentes vive agora vidas longas e saudáveis após o cancro da mama”, diz ela. “Por isso, precisamos de compreender as consequências da cirurgia não só em termos médicos, mas também na forma como as mulheres se sentem em relação ao seu corpo e à sua qualidade de vida. O sucesso do tratamento não pode ser medido apenas pelos anos ganhos. A maioria das doentes diz estar satisfeita com os resultados, mas isso acontece, geralmente, porque desconhecem as alternativas existentes. O projeto CINDERELLA oferece-lhes as ferramentas para fazerem escolhas informadas”.
A decisão de uma doente marcou Maria João. “Precisava de uma cirurgia a um tumor pequeno e tinha o peito grande para o seu tamanho. Mostrei-lhe simulações de duas opções cirúrgicas – uma mais simples e outra mais invasiva, que reduzisse o tamanho do peito e facilitasse a radioterapia. Esperava que ela escolhesse a segunda opção, mas ela disse: ‘Esta não sou eu. Não me imagino com este novo corpo’”. Maria João faz uma pausa. “É disso que se trata: dar às doentes o conhecimento e a confiança para escolherem o que lhes parece certo”.
Em 2025, lançou o Programa de Investigação sobre o Cancro da Mama (Breast Cancer Research Program), um projeto há muito idealizado para ligar a investigação básica e translacional à prática clínica, introduzindo novas técnicas e tratamentos mais personalizados para melhor servir os doentes. “Montámos uma pequena equipa: um gestor de programas, um estatístico, um responsável pela comunicação e uma secretária. Para os médicos que passam o dia a atender doentes, escrever propostas de financiamento raramente é viável. O novo programa preenche esta lacuna, ajudando os médicos a transformar questões clínicas em projetos de investigação”.
“O nosso objetivo é tornarmo-nos num importante programa de investigação clínica com biobancos, capacidades de análise de dados e gestão em ciências da saúde sólidos que se ligue diretamente com as TI. Até recentemente, eu tratava de todos os pedidos, desde equipamentos a serviços.” Maria João vê o programa como um modelo de como as unidades clínicas podem evoluir para espaços de investigação e inovação. “Começámos com a Unidade de Mama, mas esta abordagem pode ser alargada a outras áreas clínicas da Fundação Champalimaud – e a hospitais noutros locais”.
O programa já atraiu mais de 1,5 milhões de euros de financiamento, candidatou-se a cinco bolsas europeias, publicou 37 artigos e iniciou novas colaborações com grupos de investigação da Fundação Champalimaud. Procura agora o reconhecimento interno formal como unidade de investigação dentro da Fundação Champalimaud – um estatuto que proporcionaria uma estrutura mais clara e abriria novas vias para o financiamento específico da investigação. O programa está também a reforçar a sua integração no Champalimaud Research, o braço de investigação básica e translacional da Fundação, para facilitar o acesso dos investigadores clínicos a instalações científicas partilhadas.
“Em teoria, trabalhar numa clínica que é também um centro de investigação deveria ser fácil”, afirma. “Na prática, não é bem assim – os sistemas de apoio e os endereços de e-mail, até mesmo a infraestrutura, são separados. Mas as pessoas aqui são criativas. Com boa vontade, encontramos formas de fazer com que funcione”.
A olhar em diante, Maria João espera que o Programa de Investigação sobre o Cancro da Mama estabeleça um precedente para outras unidades clínicas da FC – um local onde as fronteiras entre laboratório e clínica se dissolvem. “Espero que nos tornemos verdadeiramente uma instituição de investigação integrada – um lugar onde as ideias fluam em ambas as direções, do doente para o cientista e vice-versa”, diz ela. “E, claro, espero que o CINDERELLA continue a evoluir até que todos os doentes, em todo o lado, possam beneficiar dele. Os doentes já vêm à FC a perguntar se podem participar no estudo clínico – quero um futuro onde não seja um estudo clínico, mas algo acessível a todos”.
Ao olhar para o futuro, Maria João mostra-se pragmática e esperançosa. “Trabalhamos num lugar verdadeiramente único, com clínicas e instalações de investigação sob o mesmo teto. Espero que possamos tirar o máximo partido disto”. E se ela tivesse de nomear o que mais sentiria falta se algum dia deixasse o FC? “De tudo”, diz ela. “O espaço, as pessoas, a luz – e a sensação de que estamos a construir algo que realmente muda vidas”.
Maria João Cardoso, Coordenadora da Equipa Cirúrgica da Unidade de Mama, Diretora do Programa de Investigação em Cancro da Mama, Fundação Champalimaud.
Coleção 20 Anos, 20 Histórias completa aqui.