A Fundação Champalimaud (FC) teve um papel importante nesta conquista. O Laboratório de Neurociência de Sistemas da FC foi um dos 12 laboratórios experimentais onde foram realizadas gravações em larga escala, e a FC também acolheu grande parte da equipa de engenharia responsável pelo desenvolvimento e manutenção da infraestrutura que tornou este conjunto de dados sem precedentes possível.
Ciência à Nova Escala
"Tradicionalmente, os neurocientistas estudavam uma região cerebral de cada vez", explica Zachary Mainen, Investigador Principal na FC e um dos membros fundadores do IBL. "Aqui, elevámos a fasquia de forma dramática. Em 12 laboratórios, distribuídos pela Europa e pelos EUA, registamos a atividade de mais de meio milhão de neurónios em 279 áreas cerebrais, representando 95% do volume cerebral do ratinho. Ao contrário da técnica de fMRI, onde cada pixel pode refletir a atividade combinada de cerca de um milhão de neurónios, as nossas medições captaram a atividade de neurónios individuais ao nível dos seus picos de disparo. Isto dá-nos uma imagem muito mais detalhada do cérebro e estabelece um novo padrão técnico para este campo de investigação".
Lançado em 2017 com o apoio da Wellcome e da Simons Foundation, o IBL propôs-se a fazer algo que nenhum laboratório individual poderia alcançar sozinho: medir o cérebro em ação, não em fragmentos, mas como um todo. Coordenar 12 laboratórios experimentais em dois continentes foi um desafio logístico e científico de altíssimo nível.
"Muito do esforço foi dedicado a descobrir como fazer com que diferentes laboratórios realizassem exatamente a mesma experiência", explica Mainen. "A maioria das colaborações divide tarefas entre os laboratórios, mas aqui todos tinham de seguir protocolos idênticos. Isso exigiu construir toda uma infraestrutura – hardware, software, rotinas de treino – para que não fosse possível distinguir se os dados vinham de Lisboa, Londres ou Nova Iorque. Esse nível de reprodutibilidade era absolutamente essencial".
O Pólo de Lisboa
Na FC, engenheiros e investigadores do IBL estiveram profundamente envolvidos na criação dos componentes essenciais do projeto. A FC foi um dos locais-piloto onde os equipamentos experimentais e os protocolos de treino foram prototipados, testados e aperfeiçoados.
Olivier Winter, Programador Científico Sénior do IBL na FC, recorda a dimensão do desafio: "Tínhamos de garantir que um ratinho em Lisboa realizava exatamente a mesma tarefa que um ratinho em Cold Spring Harbor ou Berkeley. Isso significava padronizar tudo – o design dos equipamentos, o software, os fluxos de dados. Os nossos engenheiros foram cruciais para assegurar que os dados pudessem ser pré-processados, curados e disponibilizados ao público de forma fiável.”
Ao dividir o calendário experimental entre vários laboratórios, a equipa conseguiu construir um conjunto de dados muito além da capacidade de qualquer grupo individual, testando ao mesmo tempo a reprodutibilidade da neurociência a uma escala global.
Como Decidem os Ratinhos?
No centro do projeto estava uma tarefa aparentemente simples. Um ratinho senta-se em frente a um ecrã. Uma luz pisca à esquerda ou à direita. O animal roda uma pequena roda para indicar a direção e recebe uma gota de água como recompensa pela resposta correta.
No entanto, em alguns ensaios, a luz é tão ténue que o rato tem de adivinhar. Para fazer estas suposições, os ratos recorrem à experiência prévia: se a luz apareceu mais vezes à esquerda anteriormente, tendem a virar para a esquerda. Isto permitiu aos investigadores estudar não apenas a perceção e a ação, mas também como o cérebro utiliza expectativas internas para orientar as escolhas.
Guido Meijer, atualmente investigador pós-doutorado no Donders Institute e anteriormente na FC, foi um dos primeiros elementos do IBL. Realizou gravações neuronais com sondas Neuropixels de última geração, que medem a atividade de neurónios individuais em todo o cérebro. "Na minha primeira reunião, ainda nem tínhamos decidido qual tarefa usar", recorda. "Mas o objetivo era claro: gravar o cérebro inteiro de ratinho, ao nível celular, durante a tomada de decisão. Juntos, projetámos e construímos os equipamentos, desenvolvemos o treino comportamental e garantimos que tudo funcionava de forma reprodutível em todos os laboratórios. Tenho um enorme orgulho por termos alcançado esse objetivo: registar o cérebro completo do ratinho durante a tomada de decisão e disponibilizar este enorme conjunto de dados ao público".
O Que Revelou o Cérebro
O primeiro artigo demonstrou que os sinais relacionados com a decisão não estão confinados a regiões especializadas, mas distribuem-se amplamente por todo o cérebro. As áreas visuais ativavam-se quando o estímulo surgia, as regiões motoras quando o ratinho se movia e as áreas de recompensa quando o animal tinha sucesso. Mas, de forma crítica, sinais associados à escolha e à recompensa surgiam quase em todo o cérebro, indicando uma comunicação contínua entre diferentes regiões cerebrais.
O segundo artigo mostrou que as expectativas dos animais – as suas suposições internas sobre o que era mais provável acontecer – também estavam representadas em todo o cérebro. Estes sinais de expectativa apareciam não apenas em áreas cognitivas “superiores”, mas também em regiões sensoriais e motoras, incluindo o tálamo, uma via de entrada sensorial essencial.
Como resume Meijer: “Não se trata de a informação convergir para um pequeno grupo de regiões que tomam decisões e ditam o comportamento. Em vez disso, a informação está altamente distribuída. O comportamento parece emergir da atividade coletiva de todo o cérebro”.
Implicações e Caminhos Futuros
As descobertas apoiam a ideia de que o cérebro funciona como uma máquina de previsão, atualizando constantemente o seu modelo do mundo para orientar o comportamento. Também podem ter implicações para condições psiquiátricas como o autismo e a esquizofrenia, que se pensa envolverem perturbações na forma como as expectativas são formadas e ajustadas.
Para Mainen, esta conquista vai além dos resultados científicos: “Nem todos os problemas exigem um esforço desta escala.
Os laboratórios individuais continuarão sempre a ser motores de descoberta. Mas, por vezes, para realmente avançar enquanto campo, é necessário unir forças. Se não tivermos confiança de que os nossos dados são fiáveis e reprodutíveis, o progresso acaba por estagnar. Outras áreas, como a navegação espacial, conseguiram isso com comportamentos mais simples. Mas a tomada de decisão é muito mais complexa, o que tornou o desafio ainda maior. Projetos como este mostram como a neurociência pode estar à altura desse desafio”.
Olhando para o futuro, o IBL pretende expandir o seu foco para além da tomada de decisão, continuando a partilhar ferramentas, conjuntos de dados e protocolos com a comunidade científica de forma aberta. Para a FC, o projeto reforça o valor de enfrentar desafios científicos de forma colaborativa. “Este projeto era demasiado grande para qualquer laboratório sozinho”, conclui Mainen. “Mas ao trabalharmos juntos, criámos um recurso que o mundo inteiro pode utilizar”.
Todos os dados, ferramentas e protocolos deste estudo estão disponíveis gratuitamente no site do International Brain Laboratory.
Leia os artigos completos na Nature:
- A brain-wide map of neural activity during complex behaviour
- Brain-wide representations of prior information in mouse decision-making