01 Maio 2025

Investigadores descobrem neurónios no cérebro da mosca da fruta que lhe dizem se está a andar a direito... ou não

As moscas da fruta podem voar ou andar, a alta velocidade, numa linha recta perfeita. Isto porque, a cada instante, uma rede de neurónios no seu cérebro detecta até o mais pequeno desvio e diz ao seu corpo como corrigir o erro.

Investigadores descobrem neurónios no cérebro da mosca da fruta que lhe dizem se está a andar a direito... ou não

Quando uma mosca da fruta está a navegar a direito a alta velocidade, como sabe que não se está a desviar da rota em linha recta? Acontece que, enquanto a mosca se move directamente em frente, a cena visual desfila, em cada uma das suas retinas, da frente para trás, de forma quase perfeitamente simétrica, como um reflexo em espelho. Ou seja, gera um padrão de movimento visual simétrico. Este padrão, conhecido como “fluxo óptico”, é crucial para o insecto detectar o seu próprio movimento e manter a sua direcção.

Além disso, a altas velocidades, assim que a mosca começa a desviar-se da sua rota em linha recta – mesmo que ligeiramente –, o fluxo óptico torna-se menos simétrico. Mas o elevado nível de simetria translacional devido ao movimento da mosca para a frente, a alta velocidade, pode mascarar assimetrias binoculares mais pequenas, causadas por ligeiras inflexões rotacionais na sua trajectória. Por isso, detectar esses “erros” e corrigi-los a nível motor não é trivial e tem de acontecer muito rapidamente. Só assim é que a mosca irá garantir que continua a mover-se a direito, como pretendido.

Num novo estudo publicado hoje na revista Nature Neuroscience (01/05/2025), uma equipa internacional de cientistas revela como a mosca da fruta, Drosophila melanogaster, consegue este feito notável. A retina, por si só, não consegue distinguir se o movimento é simétrico ou não; é necessário um processamento adicional por outras regiões do cérebro. Há uma razão simples para isso. “Se só estivermos a receber informação visual de um olho, nunca saberemos se estamos numa condição simétrica ou assimétrica. Estamos a perder metade da imagem, porque não temos a informação do outro olho”, explica Eugenia Chiappe, investigadora principal do Laboratório de Integração Sensorimotora da Fundação Champalimaud, em Lisboa, e uma das autoras principais do novo estudo.

Os investigadores – da Alemanha, de Portugal e dos EUA, em colaboração com a equipa de Chiappe – identificaram agora uma rede neuronal compacta, mas completa, que integra o input visual de ambos os olhos para detectar até pequenas assimetrias no fluxo óptico. Também mapearam o circuito completo responsável por este cálculo visual e revelaram como essa rede orienta o comportamento direccional da mosca.

Uma subtração crítica

Em primeiro lugar, os investigadores analisaram mais em pormenor uma classe bem conhecida de neurónios, chamadas células do “sistema horizontal”, ou células HS, que já se sabia estarem envolvidas na visão de movimento e no controlo da rota. Estas células processam o fluxo óptico e são sensíveis aos movimentos horizontais na retina.

Em seguida, focaram-se num par de neurónios descendentes [a jusante], conhecidos como DNp15, que recebem informação das células HS e enviam sinais para o sistema motor da mosca através do cordão nervoso ventral (VNC na sigla em inglês) – equivalente, nos insectos, à medula espinhal dos vertebrados. Utilizando a chamada microscopia de dois fotões, os investigadores mostraram que, ao contrário das células HS, os neurónios DNp15 são menos sensíveis ao fluxo óptico simétrico. Em vez disso, respondem selectivamente às assimetrias.

“A nossa ideia era que os neurónios DNp15 integravam a informação vinda dos dois lados da cabeça, recebendo informação ipsilateral [do mesmo lado] das células HS e informação contralateral de uma outra população sensível ao movimento, as células H2”, diz Chiappe.

No entanto, os cientistas descobriram que os neurónios DNp15 não se limitam a integrar – a somar – os inputs visuais. “Em vez disso, estes neurónios realizam um cálculo subtrativo, removendo activamente a componente simétrica do fluxo óptico para extrair o sinal assimétrico”, salienta Chiappe.

Estes resultados não podiam ser explicados olhando apenas para os neurónios DNp15 e para os seus inputs: tinha de haver outros neurónios envolvidos. Para os encontrar, a equipa utilizou um diagrama das ligações neurais do cérebro da mosca da fruta (https://www.fchampalimaud.org/news/first-complete-wiring-diagram-adult-…), recentemente concluído e baseado em microscopia electrónica, que lhes permitiu localizar e identificar neurónios. “A informação fornecida por este conjunto de dados constituiu um avanço fundamental”, diz Chiappe – que se tornou ainda mais espectacular a partir do momento em que a inteligência artificial permitiu a segmentação e o rastreio automáticos, que antes eram feitos “à mão”.

Quando a equipa analisou as projecções neurais primárias a jusante dos neurónios HS e H2, começou por descobrir que muitas ligações eram para neurónios descendentes que visam áreas do VNC responsáveis pelo controlo do pescoço, halteres, asas e pernas. Isto confirmou que esses neurónios visuais sensíveis ao movimento influenciam directamente o comportamento motor.

Mais importante ainda, os investigadores também identificaram uma rede de 16 neurónios adicionais que dão feedback aos neurónios HS, H2 e DNp15, modulando a sua atividade. Entre eles, uma classe de neurónios inibitórios, denominados células bIPS, desempenha um papel fundamental na subtração dos componentes simétricos do input visual.

Estes 16 neurónios respondem fortemente ao fluxo óptico simétrico e parecem suprimi-lo ao nível do output dos neurónios DNp15 – aumentando provavelmente a sensibilidade destes últimos a pequenas assimetrias. “De facto, as células bIPS ajudam os neurónios DNp15 a focarem-se no que interessa: a componente assimétrica do fluxo óptico, que sinaliza os desvios em relação a um caminho recto. A sensibilidade a pequenas assimetrias emerge então, não só do input visual, como também dos sinais recorrentes de uma rede mais alargada”, explica Chiappe.

Voltar à trajectória certa

O estudo mostra que, mesmo a alta velocidade, quando o fluxo óptico é em grande parte simétrico, este circuito compacto extrai os desvios subtis que indicam a necessidade de corrigir a rota. Os neurónios DNp15 calculam a assimetria residual e transmitem essa informação aos neurónios motores no VNC da mosca, desencadeando mudanças precisas na postura corporal que colocam de novo a mosca no caminho certo.

“Este processamento preciso do fluxo óptico transforma as assimetrias binoculares em comandos direccionais categóricos para o controlo da rota e do olhar”, resumem os autores no seu artigo.

No fundo, a capacidade da mosca da fruta para voar ou andar a direito não se deve apenas a uma visão apurada: é o resultado de um sofisticado cálculo neural. “Baseado na inibição recorrente e na competição lateral, que compara as informações vindas de ambos os olhos, este processo suprime a simetria irrelevante e enfatiza o que é mais importante: quando e como pilotar”, conclui Chiappe.

 

Artigo original aqui.

 

Texto por Ana Gerschenfeld, Health & Science Writer da Fundação Champalimaud.
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