26 Novembro 2025

Nos insectos, a evolução das preferências alimentares tem origem no cérebro, e não apenas nos sensores gustativos periféricos, concluem cientistas

Por que é que uma determinada espécie de mosca-da-fruta prefere nutrientes doces, enquanto outra come com satisfação alimentos amargos? Até agora, pensava-se que essas preferências alimentares específicas eram regidas a nível periférico, pela sensibilidade dos receptores gustativos. Mas ferramentas modernas que permitem comparar várias espécies de moscas contam uma história diferente. O comportamento alimentar parece ser co-regulado a nível do sistema nervoso central.

Nos insectos, a evolução das preferências alimentares tem origem no cérebro, e não apenas nos sensores gustativos periféricos, concluem cientistas

Para um animal sobreviver num novo ambiente, precisa de adaptar os seus hábitos alimentares, o seu comportamento, aos alimentos disponíveis nesse ambiente. Se não o fizer, não será capaz de subsistir. A regra aplica-se também às moscas-da-fruta. Por exemplo, Drosophila melanogaster e Drosophila simulans são duas espécies “generalistas”, que se alimentam de uma dieta diversificada. Pelo contrário, Drosophila sechellia, nativa das ilhas tropicais das Seicheles, alimenta-se apenas de uma fruta chamada noni (Morinda citrifolia), que é particularmente ácida e amarga — uma fruta que as duas outras espécies evitam.

Como é que a preferência alimentar peculiar de D. sechellia evoluiu? As moscas-da-fruta sentem o sabor dos alimentos com todo o corpo, da boca às pernas e às asas. Portanto, as alterações genéticas nos receptores gustativos na superfície do corpo da mosca, em termos do seu número e sensibilidade, têm sido consideradas suficientes para explicar as mudanças nas escolhas alimentares destes insectos. No entanto, um novo estudo, publicado hoje (26/11/2025) na revista Nature por investigadores na Suíça, Portugal e Alemanha, questiona essa visão.

Os cientistas partiram da hipótese — como explicou o coautor sénior Thomas Auer, da Universidade de Friburgo — de que, se Sechellia não gosta tanto do sabor doce quanto Melanogaster ou Simulans, talvez seja porque a sensibilidade dos seus neurónios se alterou – ou, simplesmente, porque tem menos neurónios que respondem a substâncias doces. Uma outra possibilidade é que já não detecta as substâncias amargas da noni, o que lhe permite alimentar-se dessa fruta.

Utilizando sumo de uva e de noni como estimulantes, Auer e os seus colegas na Suíça testaram a primeira possibilidade (relativa aos receptores do sabor doce). Os resultados foram surpreendentes: “Os receptores do doce na Sechellia não respondiam mais à noni do que os das as outras espécies”, diz Auer. Os neurónios sensoriais do sabor doce, que geralmente são importantes para a atracção, apresentavam a mesma actividade nas três espécies e o número de neurónios era o mesmo.

“Isso foi surpreendente”, acrescenta Auer, “porque pensávamos que poderia haver uma sintonização específica em relação à noni, de modo que Sechellia gostasse mais dele – e constatámos que esse não era o caso.”

Em seguida, a equipa analisou os neurónios sensíveis ao sabor amargo. “Neste caso”, explica Auer, “a nossa hipótese inicial era que, enquanto mosca ‘especialista' da noni, Sechellia poderia ter perdido a aversão à noni porque não a percebia como sendo amarga”. De facto, o genoma de Sechellia perdeu alguns receptores do sabor amargo, o que fez os cientistas pensarem que tal poderia ter levado à perda da aversão à noni. Mas isso também não se confirmou. Pelo contrário, o que eles descobriram foi que Sechellia respondia mais fortemente à noni do que as outras espécies de mosca-da-fruta em causa. “Na verdade, aconteceu o oposto do que esperávamos”, salienta Auer.

Estes resultados sugerem que as respostas dos neurónios gustativos periféricos não chegam para explicar a mudança de comportamento alimentar observada em Sechellia. A equipa suíça ficou então interessada em analisar mais em pormenor o processamento das informações gustativas no sistema nervoso central das moscas.

Foi aí que Daniel Münch e Carlos Ribeiro, respetivamente segundo coautor e coautor sénior do estudo, entraram em cena. Münch, actualmente na Universidade Justus-Liebig em Giessen (Alemanha), era na altura investigador no laboratório de Comportamento e Metabolismo de Ribeiro, na Fundação Champalimaud, em Lisboa. “No laboratório, desenvolvemos uma técnica para visualizar a actividade de todos os neurónios localizados no centro de processamento do sabor no cérebro da mosca”, explicou Münch.

A equipa da Fundação Champalimaud visualizou as respostas associadas ao sabor – ou seja, os padrões de actividade neuronal –, através de imagiologia do cálcio no cérebro de espécimes geneticamente modificados de Melanogaster, Simulans e Sechellia fornecidos pelo laboratório de Auer. Mais especificamente, analisaram uma parte do sistema nervoso central da mosca, chamada zona subesofágica, um conjunto de células nervosas localizado abaixo do esófago que é crucial para a alimentação.

“Criámos um conjunto de dados de imagens das três espécies de moscas e, a seguir, comparámos os seus padrões de actividade neuronal”, explica Münch.

O que descobriram foi que as diferenças de comportamento alimentar entre as espécies não se deviam a alterações na informação sensorial, mas sim ao processamento dessa informação e à forma como era tratada no cérebro. “Basicamente, algumas regiões da zona subesofágica da Sechellia responderam de forma mais intensa à noni do que ao sumo de uva, enquanto que nas moscas Melanogaster aconteceu o contrário”, diz ainda Münch.

Além disso, nas regiões associadas aos neurónios motores (responsáveis pelo comportamento de ingestão dos alimentos pelas moscas), os cientistas não encontraram quase nenhuma resposta ao sabor doce nas moscas Sechellia. Por outras palavras, os resultados corroboraram a hipótese de que as escolhas alimentares eram reguladas pelo processamento de informações ao nível do cérebro.

“Quando desenvolvemos o nosso método de imagem com Daniel, uma das ideias era que ele pudesse ser usado para observar a actividade cerebral em diferentes insectos e espécies, porque não é necessário usar muitas das técnicas genéticas normalmente exigidas pela imagiologia clássica”, diz Ribeiro.

“É extremamente gratificante ver como essa abordagem produz aqui imagens tão reveladoras de como a evolução altera o paladar e os hábitos alimentares por meio de mudanças na função cerebral.”

Os resultados abrem caminho para futuras pesquisas, diz Auer. “Creio que também é importante para a área reconhecer que tem prevalecido uma visão algo simplista: de que tudo o que activa neurónios sensoriais do amargo é aversivo e tudo o que activa neurónios sensoriais do doce é atrativo. Mas temos aqui um caso que evidencia que as coisas são mais complicadas, mais complexas, do que isso.”

Uma das potenciais aplicações destes novos resultados poderia ser em estratégias de controlo de insectos. “É normal pensar-se que é possível manipular o comportamento alimentar dos insectos bloqueando as respostas periféricas”, observa Auer. Mas talvez essa não seja realmente a única maneira de o fazer.

Artigo original aqui

Imagem de Benjamin Fabian.
Texto por Ana Gerschenfeld, Health&Science Writer da Fundação Champalimaud.
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