São hoje (17 de Junho) divulgados os resultados do mais recente concurso das ERC Advanced Grants. O Conselho Europeu de Investigação (do inglês, European Research Council - ERC) selecionou dois novos projetos na área das ciências da vida que no total irão receber 5M€.
O financiamento do ERC, no valor total de 721M€, será destinado a 281 investigadores na Europa. No caso das ciências da vida, 732 propostas foram apresentadas e 83 foram selecionadas para financiamento, o que representa uma taxa de sucesso de cerca de 11%.
Em Portugal os cientistas vencedores são a neurocientista Megan Carey na Fundação Champalimaud e a neurobióloga Mónica Sousa do Instituto de Investigação e Inovação em Saúde da Universidade do Porto (i3S). Cada uma receberá cerca de 2.5M€ para o desenvolvimento de projetos de investigação ao longo dos próximos cinco anos.
Mais sobre os investigadores e projetos financiados:
Megan Carey, Champalimaud Foundation
Esculpindo a atividade cerebelar ao longo do tempo
Todos conhecemos a expressão “é como andar de bicicleta” - descreve algo que nunca se esquece. Isso acontece porque as memórias motoras, como andar de bicicleta ou tocar um instrumento, tornam-se profundamente enraizadas no cérebro com o tempo. Embora se saiba bastante sobre como armazenamos factos e experiências (conhecidas como memória declarativa), sabe-se muito menos sobre como as memórias motoras são formadas e retidas.
Um elemento-chave neste processo é o cerebelo, uma parte do cérebro tradicionalmente vista como responsável pelo processamento do movimento, recebendo informações sensoriais e transformando-as em comandos motores. No entanto, novos estudos sugerem que o cerebelo é muito mais dinâmico do que se pensava. Não está apenas ativo quando estamos a aprender ou a executar movimentos mas também trabalha nos bastidores, durante períodos de repouso e entre sessões de prática.
Este projeto irá explorar como o cerebelo ajuda a consolidar memórias motoras e a adaptar-se a novos desafios. Utilizando ferramentas de ponta que permitem observar e manipular com precisão a atividade de células cerebrais específicas, este projeto pretende responder às seguintes questões fundamentais: (1) Como é que a atividade cerebelar durante o repouso ajuda a estabilizar as memórias motoras?; (2) Como contribui para aprendizagens que ocorrem em diferentes escalas temporais, desde minutos até dias?; (3) Como é que diferentes tipos de células cerebelares guiam que o cérebro aprende e recorda ao longo do tempo?
Ao revelar como o cerebelo funciona não só durante o movimento, mas também durante o repouso e ao longo de diferentes períodos de tempo, esta investigação poderá abrir caminho a novas formas de melhorar ou restaurar a aprendizagem e a memória.
“Sinto-me profundamente honrada por ter sido distinguida com este financiamento do ERC. É um reconhecimento importante do trabalho arrojado e criativo realizado ao longo dos últimos 15 anos pelos meus talentosos estudantes e pós-doutorandos. Este financiamento deixa-me muito entusiasmada pois irá permitir-nos avançar em direções ousadas o que, de outra forma, não seria possível.”
Biografia da Investigadora
Megan R. Carey com dupla nacionalidade Norte-Americana e Portuguesa é Investigadora Principal Sénior no Programa de Neurociência da Fundação Champalimaud (FC), em Lisboa. Doutorou-se em 2005 pela University of California, San Francisco, e realizou um pós-doutoramento na Harvard Medical School antes de iniciar o seu laboratório independente na FC em 2010. O Laboratório Carey combina análise comportamental quantitativa, genética e fisiologia para compreender como o cérebro controla movimentos aprendidos e coordenados. A Dra. Carey foi eleita membro da EMBO (Organização Europeia de Biologia Molecular) em 2024. O seu trabalho tem sido financiado por várias entidades nacionais e internacionais, incluindo a FCT, o ERC e o HHMI. Entre 2015 e 2019, foi conselheira para políticas de ciência junto do Comissário Europeu para a Investigação e Inovação.
Mónica Sousa, i3S
CORDheal: investigação pioneira sobre regeneração da espinhal medula
Ao contrário do que acontece nos humanos e na maioria dos mamíferos, o rato-espinhoso (Acomys cahirinus) possui a capacidade única de regenerar espontaneamente a espinhal medula após uma lesão, evitando a formação de cicatrizes que bloqueiam a recuperação funcional. Esta descoberta, feita pela equipa de Mónica Sousa, desafia décadas de conhecimento científico e posiciona o Acomys como um modelo extraordinário para estudar regeneração do sistema nervoso central (SNC). Esta descoberta está na base do projeto CORDheal, liderado pela investigadora do i3S – Instituto de Investigação e Inovação em Saúde da Universidade do Porto, agora financiado pelo ERC (European Research Council).
Quando ocorre uma lesão na espinhal medula, a comunicação entre o cérebro e o resto do corpo é interrompida, resultando frequentemente em paralisia irreversível. De uma forma geral, isto deve-se à incapacidade dos axónios — longas extensões das células nervosas responsáveis pela transmissão de informação — em ultrapassar o tecido cicatricial que se forma após a lesão, impossibilitando o restabelecimento de ligações. Desafiando este paradigma, Mónica Sousa demonstrou recentemente que o rato-espinhoso possui a extraordinária capacidade de regenerar espontaneamente a espinhal medula, restabelecendo a sua função de forma robusta e eficiente, ao contrário dos outros mamíferos. Em vez de formar uma cicatriz inibitória, o Acomys desenvolve um tecido pró-regenerativo, preservando a continuidade estrutural da medula e permitindo refazer conexões após lesão, bem como a recuperação das funções motoras e sensitivas.
Para mapear os processos celulares e moleculares envolvidos na regeneração única desta espécie de mamífero, a equipa do projeto irá comparar a medula lesionada de Acomys com a de Mus musculus (o ratinho comum, incapaz de regenerar), através de análises avançadas, célula a célula. O estudo permitirá identificar as populações de células e as vias moleculares responsáveis pelo fenómeno de recuperação no Acomys. O grande objetivo do CORDheal é abrir caminho a novas terapias para lesões medulares em humanos.
A equipa do projeto irá ainda investigar esta capacidade “especial” do Acomys mais a fundo para tentar perceber se o processo regenerativo após-lesão recapitula o desenvolvimento embrionário; identificar os genes (eventualmente novos) que poderão estar relacionados com essa capacidade regenerativa; e situar quando é esses genes surgem ao longo da evolução das espécies. Para isso serão realizados estudos comparativos com espécies próximas para determinar em que momento evolutivo surgiu esta capacidade regenerativa neste mamífero.
Com um programa científico altamente inovador e multidisciplinar, o projeto CORDheal promete ultrapassar os atuais limites do conhecimento e contribuir de forma decisiva para desvendar os mecanismos celulares adaptativos que tornam possível a regeneração do sistema nervoso central em mamíferos.
"Sinto-me muito orgulhosa e lisonjeada por receber a Advanced Grant do European Research Council. Este reconhecimento irá permitir explorar questões científicas desafiantes, que de outra forma não conseguiríamos abordar. É também um reconhecimento da dedicação e talento dos membros da minha equipa, passados e atuais, e sublinha a relevância do nosso trabalho. Embora sinta o peso desta distinção, estou muito entusiasmada por dar este próximo passo e continuar a alargar as fronteiras do conhecimento científico."
Biografia da investigadora
Mónica Sousa lidera, desde 2008, o grupo de investigação em Regeneração Nervosa no i3S, dedicado à descoberta dos mecanismos que regulam o crescimento e regeneração dos axónios. Entre as principais descobertas do seu grupo destaca-se a identificação do rato-espinhoso como o primeiro mamífero conhecido capaz de regenerar espontaneamente a sua espinhal medula — uma descoberta essencial que abriu novas perspetivas na medicina regenerativa.
Mónica M. Sousa é doutorada em Ciências Biomédicas pela Universidade do Porto. Durante o seu doutoramento, investigou a biologia de uma proteína propensa à agregação responsável pela degeneração axonal. Posteriormente, realizou investigação pós-doutoral na Universidade de Columbia, em Nova Iorque, onde estudou vias de sinalização implicadas na neurodegenerescência induzida por fibrilas amiloides.
Ao longo da sua carreira, Mónica Sousa tem sido distinguida com diversos prémios de prestígio, incluindo o Prémio Pfizer em Investigação Básica e o Prémio Melo e Castro (em 2019 e 2022), entre outros. A sua investigação tem sido financiada por importantes entidades internacionais, como a Wings for Life Foundation e a Fundação "la Caixa".
Para além da sua atividade científica, Mónica tem vasta experiência em liderança, orientação científica e política científica. Em 2024, a sua excelência científica e o impacto do seu trabalho foram reconhecidos com a sua eleição como membro da European Molecular Biology Organization (EMBO).
Sobre as Bolsa do Conselho Europeu para a Investigação - ERC Grants
As ERC Grants são bolsas de investigação atribuídas pelo Conselho Europeu de Investigação (do inglês European Research Council). Qualquer investigador pode concorrer, desde que pretenda desenvolver a sua investigação numa instituição da União Europeia. Sem quotas por países, áreas ou outros, estas bolsas são atribuídas com base, única e exclusivamente, no mérito do projeto.
O financiamento é para o desenvolvimento de projetos ao longo de um período de cinco anos e é atribuído em três níveis principais, de acordo com a senioridade do investigador proponente: Starting, para investigadores com 2 a 7 anos após o Doutoramento, num valor de até 1.5M€; Consolidator, para investigadores com 7 a 12 anos após o Doutoramento e um financiamento de até 2M€; Advanced, para investigadores independentes, num valor de até 3.5M€. A estes valores podem acrescer apoios iniciais, para realojamento ou equipamentos científicos.
Texto de Catarina Ramos, Co-coordenadora da Equipa de Comunicação, Eventos & Outreach da Fundação Champalimaud.