20 Março 2024

Protocolo Watch & Wait: "Temos de ser muito, muito rigorosos nos critérios de selecção dos doentes"

Em alguns doentes, os tumores localizados do recto podem ser tratados com radioquimioterapia, sem recorrer imediatamente (ou talvez nunca) à cirurgia. E se células cancerígenas residuais indetectáveis permanecessem no corpo e voltassem a desenvolver um tumor, esses doentes seriam então operados de imediato. Mas será que o facto de terem adiado a cirurgia pode resultar num maior risco de desenvolverem metástases em locais distantes do corpo?

Protocolo Watch & Wait: "Temos de ser muito, muito rigorosos nos critérios de selecção dos doentes"

Uma estratégia denominada Watch & Wait (W&W) tem sido cada vez mais utilizada, incluindo na Fundação Champalimaud, para evitar a cirurgia e as complicações associadas, num grupo seleccionado de doentes cujos tumores se tornam indetectáveis após um tratamento de radioquimioterapia. Em termos de controlo local do tumor, tem sido demonstrado que é tão seguro operá-los mais tarde – se alguma vez o tumor der sinais de regressar – como operá-los imediatamente após a radioquimioterapia. Mas até agora, não havia dados suficientes para estudar as consequências sistémicas do adiamento da cirurgia nestes doentes – ou seja, a potencial metastização do seu cancro.

Agora, um estudo de um grupo internacional de investigadores, cujo primeiro autor é Laura Fernández, cirurgiã colorrectal da Unidade Digestiva da Fundação Champalimaud, foi apresentado no simpósio anual da American Society of Clinical Oncology-Gastroinstestinal Cancers, fornecendo a primeira avaliação quantitativa deste risco. Nesta entrevista, Laura Fernández fala sobre o W&W e sobre os novos resultados, que foram submetidos para publicação.

O que é o Protocolo Watch & Wait (W&W)?

Para os doentes com tumores do recto baixo (os tumores "baixos" são os que se encontram perto do esfíncter, na margem do ânus), o tratamento padrão é a radioquimioterapia seguida de cirurgia.

A cirurgia do tumor do recto baixo tem complicações graves. A remoção do recto pode levar à incontinência fecal e a consequências graves para as funções urinária e sexual. Além disso, há muitos doentes cujo tumor se situa ao nível dos esfíncteres ou até os invade, e nesse caso, a única opção cirúrgica implica uma colostomia definitiva, ficando o doente, para toda a vida, com um saco no abdómen de recolha das fezes. Seja como for, a cirurgia irá sempre afetar muito a qualidade de vida dos doentes.
 
Fazer radioquimioterapia antes da cirurgia alterou significativamente o tratamento moderno do cancro do recto. A observação da resposta do tumor introduziu novas possibilidades no algoritmo trapêutico. De facto, sabemos que, em cerca de 30-40% dos doentes que são operados após radioquimioterapia, quando o recto removido é analisado, não resta uma única célula tumoral. A radioquimioterapia leva ao desaparecimento total do tumor. 

Foi esta observação que motivou, há 20 anos, uma cirurgiã brasileira [Angelita Habr-Gama, coautora do novo estudo] a criar o programa Watch & Wait para tentar identificar estes doentes com resposta completa do tumor à radioquimioterapia, de forma a evitar-lhes a cirurgia e todas as complicações associadas. 

E é isso que vários centros oncológicos estão a fazer hoje, em particular a Fundação Champalimaud. Após um doente ter recebido radioquimioterapia para um tumor do recto baixo, é realizada uma avaliação – que consiste numa endoscopia, num toque rectal e uma ressonância magnética (IRM) do recto – para identificar a resposta do tumor. Se não houver evidência de um tumor residual, o doente é considerado candidato ao programa W&W e inicia um protocolo de vigilância muito rigoroso, com uma excelente qualidade de vida e mantendo resultados oncológicos aceitáveis.

No entanto, um dos riscos de manter o recto in situ é o facto de aproximadamente 25-30% desses doentes terem um recrescimento local do seu tumor durante os três primeiros anos. Contudo, a maioria destes recrescimentos pode ser controlada com sucesso através de cirurgia diferida e parece não ter impacto negativo no controlo local da doença. 

Porque é que o tumor volta a crescer?

Porque não existe nenhum método para ver as próprias células de forma não invasiva. E em cerca de 25 a 30 por cento dos doentes que entram no protocolo Watch & Wait, a dada altura, durante o seguimento, o tumor torna-se novamente aparente. Isto significa que existiam células tumorais residuais, um punhado delas, que não podiam ser detectadas nem por endoscopia nem por ressonância magnética, mas que num ano ou mais se tornaram visíveis porque começaram novamente a proliferar. Neste caso, não esperamos mais, os doentes são operados imediatamente. 

Assim, através do W&W, é possível controlar os tumores localmente.

Mas no vosso mais recente trabalho, começaram a considerar outro tipo de risco: que as células cancerígenas residuais possam migrar para partes distantes do corpo, causando metástases. Porquê só agora? 

Durante muitos anos, os estudos sobre o W&W centraram-se muito no aspeto local da doença. Temos de ter em conta que o risco de metástases na totalidade dos doentes seguidos por W&W é muito baixo, aproximadamente 10%. Descrevemos este facto no nosso trabalho anterior. Desta vez, quisemos analisar especificamente o subgrupo de doentes com um recrescimento local.

Considerando que o número total destes doentes é baixo, precisávamos de uma grande base de dados para os estudar. Actualmente, dispomos de uma grande base de dados de doentes que fazem W&W e a investigação pode progredir. Dispomos de uma base de dados internacional com mais de 2.000 doentes de 27 países que seguiram o protocolo W&W. Destes, cerca de 508 desenvolveram um recrescimento local. Foi esse o grupo que considerámos para o nosso estudo, que apresentámos no simpósio anual da American Society of Clinical Oncology-Gastroinstestinal Cancers (ASCO-GI), em São Francisco, no passado mês de janeiro (e que foi seleccionado como sendo um dos abstracts com mais mérito, com melhor impacto académico). 

O nosso desafio era encontrar um grupo de comparação para estes doentes com recrescimento local. Estudos anteriores tentaram investigar os resultados oncológicos de doentes com recrescimento local. Em primeiro lugar, os doentes com recrescimento local foram comparados com os doentes com uma resposta clínica completa após radioquimioterapia que entraram no Watch & Wait e que nunca desenvolveram um recrescimento local. Os resultados foram notavelmente diferentes em termos de taxas de metástases distantes (os doentes com recrescimento local tinham um risco significativamente mais elevado). 

No entanto, estes resultados eram expectáveis, porque se estava a comparar doentes com tumores residuais e doentes sem qualquer tumor residual! Em contrapartida, outros estudos tentaram comparar doentes com recrescimento local com doentes com resposta incompleta tratados com cirurgia, e aí não encontraram diferenças significativas.

Nós consideramos que esta comparação é "injusta". Enquanto os doentes com recrescimento local têm necessariamente excelentes respostas iniciais, os doentes que são submetidos a cirurgia imediata no reestadiamento têm vários níveis de resposta, incluindo respostas mínimas, que são conhecidas por ter um dos piores prognósticos oncológicos. Por estas razões, decidimos efectuar uma comparação do risco de metástases entre os doentes com recrescimentos locais e os doentes com uma resposta excelente, mas incompleta, à radioquimioterapia.

Tendo em conta que os recrescimentos locais do W&W são respostas incompletas (células tumorais residuais não identificadas) com uma excelente resposta inicial, devem idealmente ser comparados com doentes tratados por cirurgia imediata após radioquimioterapia e com uma excelente resposta patológica: 10% de células cancerosas residuais ou menos, com base na avaliação patológica do recto removido. 

A nossa equipa decidiu utilizar uma base de dados espanhola onde os cirurgiões dos hospitais introduzem os seus dados cirúrgicos: a base de dados Vikingo, um programa nacional de cancro do recto criado em Espanha para uniformizar a gestão do cancro do recto. Todos os doentes desta base de dados foram submetidos a cirurgia radical imediata após radioquimioterapia, independentemente da resposta a este tratamento. A partir desta base de dados, seleccionámos apenas os doentes com menos de 10% de células tumorais residuais (respostas excelentes!).

Porquê o limite de 10%?

Porque até 10%, isso corresponde a doentes com respostas patológicas quase completas. É a percentagem mínima de células tumorais residuais na classificação patológica.

Em resumo, a única diferença entre estes dois grupos, ambos com células residuais, é o facto de um grupo ser operado imediatamente e o outro apenas um ou dois anos mais tarde (quando o recrescimento é identificado). Por isso, pensamos que este é o melhor grupo de comparação possível para comparar com os doentes que fizeram W&W e tiveram um recrescimento local.

O que é que descobriram?

Descobrimos que o grupo Watch & Wait tinha um risco mais elevado de metástases em sítios distantes do corpo (MD) do que o grupo que foi operado imediatamente. No nosso artigo, que submetemos agora para publicação no Journal of Clinical Oncology (uma publicação da ASCO), concluímos que a taxa de MD era significativamente mais elevada entre os doentes em WW com recrescimento local: 22,8% contra 10,2% no grupo de cirurgia imediata com recrescimento local. Por conseguinte, escrevemos, "deixar o tumor primário indetectável in situ até ao desenvolvimento de recrescimento local pode resultar em piores resultados oncológicos" [nos doentes W&W]. 

Quantos doentes W&W poderão estar em maior risco?

Esta é uma questão muito importante. Aqui, preciso de explicar que o risco de que estamos a falar é muito baixo se considerarmos toda a população de doentes com cancro do recto. Cerca de 40% dos doentes com cancro do recto podem ser candidatos ao protocolo WW, e apenas 30% desses doentes terão um recrescimento local, ou seja, 12% de todos os doentes com cancro do recto. Por isso, os 20-25% dos que terão metástases correspondem a 3% de todos os doentes com cancro do recto e radioquimioterapia. É por esta razão que precisamos de grandes séries de doentes para demonstrar qualquer associação significativa. Esta é a primeira vez que a estamos a pôr em evidência. 

A mensagem aqui é que existe um subgrupo de doentes que pode apresentar um risco mais elevado de metástases em sítios distantes do corpo. Trata-se de um pequeno subgrupo no âmbito do programa W&W? Sim. É importante conhecê-lo e reconhecê-lo? Claro que sim. Esta informação é também importante para futuros estudos neste domínio.

Isto torna a decisão de entrar no protocolo W&W mais complicada para os doentes – e para os médicos?

Provavelmente não. As escolhas implicam sempre riscos. No entanto, esta informação é fundamental para o aconselhamento dos doentes e dos médicos. Quando o W&W é uma opção, devemos ser capazes de informar os doentes sobre todos os benefícios e riscos das suas opções de tratamento.

Um maior risco de MD pode pôr em causa a validade do protocolo Watch & Wait?

Não. O que estamos a dizer é que temos de ser cautelosos. O protocolo Watch & Wait não se destina a todos os doentes com cancro do recto. Temos de seleccionar os doentes certos para participarem no programa. Existem critérios endoscópicos, radiológicos e clínicos para definir quais os doentes que têm uma resposta clínica completa. O Protocolo Watch & Wait não vai desaparecer, é uma excelente opção para um subgrupo de doentes, mas temos de seleccionar os doentes certos.

 

Entrevista por Ana Gerschenfeld, Health & Science Writer da Fundação Champalimaud.
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