01 Agosto 2022

Quer parar de fumar e não consegue? Peça ajuda e não desista!

Por ocasião do Dia Mundial do Cancro de Pulmão, falámos com a pneumologista Susana Simões, da Unidade do Pulmão do Centro Clínico Champalimaud, sobre a consulta de Cessação Tabágica que ali existe desde 2016. Aberta aos doentes com cancro do pulmão, aos doentes com outros cancros e a qualquer pessoa que queira parar de fumar.

Quer parar de fumar e não consegue? Peça ajuda e não desista!

O Sr. P. começou a ser seguido na consulta de cessação tabágica da Fundação Champalimaud em meados de 2018. Fumava há 33 anos e, em 2018, consumia cerca de um maço de cigarros por dia. A sua primeira tentativa falhou, mas o Sr. P. nunca desistiu da consulta nem da ideia de deixar de fumar. Conseguiu finalmente atingir o seu objectivo em meados de 2020, através de uma abordagem multidisciplinar (incluindo consultas de psicologia e psiquiatria) – e, até à data, nunca mais fumou. Já podia ter tido alta, mas quer continuar a ser seguido para evitar uma recaída e ainda participar no programa de rastreio do cancro do pulmão.

Susana Simões, pneumologista da Unidade do Pulmão do Centro Clínico Champalimaud (CCC), é responsável pela consulta de cessação tabágica. Para ela, este doente “é paradigmático da dificuldade de deixar de fumar”. Mas também transmite uma mensagem fundamental a todos aqueles que querem deixar de fumar: nunca se dar por vencido. “Às vezes não se consegue à primeira, mas não há vergonha nenhuma nisso. Sabemos que, em média, podem ocorrer cinco a sete tentativas para deixar de fumar até o conseguir definitivamente”, enfatiza a pneumologista.

Susana Simões faz consultas de cessação tabágica desde 2008, tendo começado a trabalhar no CCC em Dezembro de 2015. Nessa altura, estas consultas não existiam no CCC; foram lançadas no ano seguinte, em 2016. “Quando abordamos o cancro do pulmão, é obrigatório ter uma consulta de cessação tabágica”, diz Susana Simões. “Faz parte da nossa formação de pneumologista.” 

“O tabagismo é a principal causa de morte prevenível e o principal factor de risco para o cancro do pulmão em cerca de 80 a 90% dos casos”, acrescenta. De facto, o tabagismo tem uma relação extremamente forte com a doença em geral, da diabetes às doenças autoimunes passando pelas doenças cardiovasculares, e não só com o cancro.

Dois malfeitores: a nicotina e o resto do cigarro 

O que “injectamos” nos nossos pulmões quando fumamos um cigarro pode ser dividido da seguinte maneira, talvez simplista mas contundente: por um lado a nicotina presente no tabaco; por outro, os constituintes do fumo de cigarro (que inclui o papel com que este é feito). 

O fumo do cigarro tem cerca de 7000 constituintes químicos que globalmente são potencialmente cancerígenos. Todavia, entre estas substâncias, destaca-se particularmente uma, a nicotina, que para além de cancerígena e de poder produzir efeitos tóxicos imediatos (aumento da frequência cardíaca e da pressão arterial e até síndromes de intoxicação aguda) é, acima de tudo, a responsável pela dependência e a dificuldade em deixar de fumar. “Só a nicotina causa dependência e sintomas de privação”, explica Susana Simões. Uma receita perfeita para o desastre: o cigarro, que é das coisas mais nocivas que há para a saúde humana, é um veículo da nicotina, cujos efeitos aditivos levam as pessoas, a partir de certa altura, a fumarem cada vez mais e a não conseguir parar. Este é o negócio das tabaqueiras: o negócio da dependência nicotínica.

“É claro que a nicotina é diferente das outras drogas na medida em que os sintomas de privação são menos fortes”, salienta Susana Simões. “Mas o seu mecanismo de acção é semelhante”. O fumo do cigarro leva a nicotina até ao cérebro em poucos segundos, onde esta activa zonas do chamado centro do prazer, libertando substâncias como a dopamina, que relaxam e diminuem a ansiedade. E ainda, em certos locais do cérebro, estimula a libertação de serotonina, conhecida como "hormona da felicidade", fazendo aumentar a quantidade deste neurotransmissor em circulação e modulando o estado de humor do fumador.

Mas há mais: com a continuidade dos hábitos tabágicos, o cérebro responde à nicotina aumentando o número de receptores da nicotina à superfície das suas células. Um autêntico efeito bola de neve, que leva inexoravelmente à dependência. Deixar de fumar torna-se então cada vez mais difícil, porque quem o tenta desenvolve sintomas de privação que resultam da falta de nicotina no organismo e, por isso, sente-se mais agitado, ansioso, irritado, pode ter insónias... 

No entanto, tudo isso é passageiro. “Todos esses sintomas têm um pico de intensidade às 48/72 horas, sendo mais difícil o primeiro mês sem fumar. Aproximadamente ao fim de três meses, estas queixas atenuam-se", diz Susana Simões. “É por isso que a duração do tratamento farmacológico da cessação tabágica dura cerca de três meses, pois corresponde à ‘fase aguda’ de privação de cigarro/nicotina." 

Um sintoma de privação que permanece é o “craving” (“cravar” na adaptação da palavra a português), que é o desejo sentido como irresistível de acender um cigarro. “É por isso que é tão difícil manter-se sem fumar e que há um risco de recaída a cada momento, sobretudo quando as circunstâncias levam as emoções ao rubro”, diz Susana Simões. “Não há nada tão rápido como fumar para relaxar; é como uma injecção”, acrescenta.

O tabagismo é uma doença, afirma. E é assim classificado pela Organização Mundial de Saúde (OMS), tal como o alcoolismo.

“Pena os maços de cigarros não virem com bula!”

É difícil alterar os hábitos tabágicos, simplesmente porque os comportamentos humanos enraizados são sempre difíceis de alterar. E de facto, o maior perigo é a recaída. “É por isso que o programa de cessação tabágica dura dois anos e começa por uma fase ‘aguda’ de três meses (o período mais crítico, como já foi referido) durante a qual pode ser necessária uma medicação para ajudar a controlar os sintomas de privação”, explica Susana Simões 

A partir daí, a cessação tem de se manter por vontade própria da pessoa. Mas em certa medida, ela já está preparada para isso. “Conseguir não fumar durante três meses é um indicador positivo, e quanto mais durar a cessação, maior a probabilidade de não se recair”, salienta.

Como decorre o processo? Na Fundação Champalimaud, tal como nas outras instituições de cuidados de saúde públicas e privadas que têm este tipo de consulta em Portugal, a estratégia adoptada é essencialmente a mesma e segue as orientações da Direcção-Geral da Saúde.

No CCC, o objectivo é que "os doentes oncológicos ali seguidos sejam também acompanhados em consulta de cessação tabágica, já que deixar de fumar traz sempre vantagens", especifica Susana Simões. Esta consulta aplica uma intervenção intensiva e multidisciplinar, onde o doente é cuidadosamente avaliado e, em conjunto com ele, se decide o momento ideal para deixar de fumar e a necessidade ou não de um tratamento farmacológico (o mais adaptado a cada caso). A última palavra quanto à decisão de deixar de fumar é sempre do doente – e nesse caso, a escolha de medicação é feita de comum acordo entre médico e doente.

Nesta fase, essencialmente três tipos de medicamentos são usados em primeira linha: terapêutica de substituição da nicotina (adesivos, pastilhas, gomas), inibidores dos receptores cerebrais de nicotina ou anti-depressivos. As consultas, que ocorrem de mês a mês, são feitas por Susana Simões ou pela sua colega Cláudia Matos.

Na primeira consulta é fixado o “dia D” – o primeiro dia sem cigarro – e, nesse dia, o doente irá ser contactado por um enfermeiro para ver se está tudo a acontecer como previsto e ajudá-lo a ultrapassar esse momento crítico.

“Se a pessoa conseguir manter-se sem fumar durante três meses, na terceira destas consultas da primeira fase é marcada nova consulta para três meses depois”, explica Susana Simões. “E ao fim de seis meses sem fumar, é marcada mais uma consulta para seis meses depois.”

“Ao fim de um ano sem fumar, a pessoa é considerada um ex-fumador e só volta a ter consulta passado um ano. Ao fim de dois anos é-lhe dada alta”, prossegue. Entretanto, os enfermeiros estão sempre disponíveis para serem contactados telefonicamente pelo doente em caso de situação de risco ou de dúvidas – e o doente pode voltar à consulta sempre que necessário. 

A propósito das situações de risco agudo de recaída, Susana Simões fala de algo que talvez muitos não saibam: o episódio de “cravar” do cigarro dura cerca de quatro a cinco minutos. Nesses momentos, muitas vezes desencadeados por situações de stress emocional, “é preciso lembrar-se disso e encontrar estratégias para se distrair até passarem”, diz. “O importante é arranjar soluções que funcionem para cada pessoa.”  

Embora não sendo a maioria, muitos doentes são referenciados para as consultas de psicologia e psiquiatria (também existentes no CCC), onde eventualmente são prescritos medicamentos, de acordo com as suas necessidades, que possam complementar o tratamento de cessação tabágica (por exemplo, anti-depressivos). “Curiosamente, há doentes que se recusam a fazer qualquer medicação para deixar de fumar”, conta Susana Simões, “porque leram a bula do medicamento e ficaram assustadíssimos com os possíveis efeitos secundários. Pena que os maços de cigarros não venham com bula!” desabafa.

Como se viu aqui, a multidisciplinaridade é uma das características centrais da consultas de intervenção para a cessação tabágica, numa colaboração entre pneumologistas, enfermeiros, psicólogos, nutricionistas – e o próprio doente: “Há um médico que faz aconselhamento, há o apoio e seguimento dos doentes feito pelos enfermeiros, as consultas com psicólogos e por vezes com psiquiatras”, diz Susana Simões. E ainda, o aumento do apetite que acompanha a cessação tabágica (um outro sintoma de privação que não desaparece) pode ser abordado através das consultas de nutrição, que ajudam a controlar o aumento de peso resultante.”

Dois factores preditivos de sucesso

A médica não esconde contudo que a taxa de sucesso, após um ano de consulta de cessação tabágica, é modesta – de cerca de 20%. Mesmo assim, esta taxa é várias vezes superior à das pessoas que deixam de fumar sem qualquer ajuda. Todavia, é possível fazer um prognóstico bastante preciso para cada doente.

Existem dois factores que permitem avaliar, para cada doente, a probabilidade de sucesso da estratégia de cessação: a vontade do fumador em deixar de fumar, por um lado, e o seu nível de dependência da nicotina, por outro. Ambos são quantificáveis utilizando questionários específicos.

“Nas consultas de intervenção intensiva, temos um tempo próprio para falar do tabaco – da história da pessoa, das suas tentativas anteriores, das recaídas, das suas formas de convívio. Fazemos uma avaliação minuciosa da motivação e do grau de dependência e estabelecemos um plano à medida da pessoa”, diz Susana Simões. Actualmente, as duas pneumologistas do CCC que fazem consulta de cessação tabágica têm em média, juntas, cinco a seis consultas deste tipo por semana.

Mas mesmo sem utilizar questionários, qualquer profissional de saúde consegue avaliar a motivação da pessoa em deixar de fumar numa escala entre 1 e 10 (1 nada disposto, 10 totalmente disposto). E, para avaliar a dependência da nicotina, bastam três perguntas simples, explica ainda Susana Simões. 

Primeira pergunta: “Quantos cigarros fuma por dia?” A partir de 20 cigarros, a dependência é considerada importante. Segunda Pergunta: “Quanto tempo depois de acordar fuma um cigarro?” Quem fuma nos primeiros cinco minutos é mais dependente. Terceira pergunta: “Qual é o cigarro que mais custa a deixar?” Se for o primeiro do dia, isso é sinal de forte dependência. Uma baixa motivação aliada a uma forte dependência corresponde a um prognóstico negativo em termos de capacidade de deixar de fumar. 

O que de facto Susana Simões gostava de ver posto em prática, em todos os centros de saúde e mais geralmente por todos os profissionais de saúde, nas consultas de todas as especialidades, é o que chama a “estratégia 3A”. 

A estratégia 3A, que pode ser repetida a cada consulta médica, consiste em: Abordar os hábitos tabágicos do doente; se for fumador, Aconselhá-lo a deixar de fumar e falar-lhe dos benefícios vs os riscos do tabagismo; Avaliar os dois factores determinantes do prognóstico de cessação tabágica: motivação e dependência. 

Ao repetirem esta estratégia a cada consulta, de forma ocasional, os médicos poderiam assim ajudar as pessoas motivadas e com pouca dependência a “fermentar na sua cabeça a ideia de abandonar o cigarro”, diz Susana Simões. “Na Fundação Champalimaud, sempre que solicitado, nós fazemos este tipo de intervenção breve com os doentes em internamento em outras unidades. São pessoas que passam dias sem fumar e isto é uma oportunidade, embora pontual, para o fazer.”

“A intervenção breve ajuda a que entre 2 e 3% das pessoas consigam deixar de fumar sozinhas”, acrescenta. “Devia ser uma obrigação de todos os profissionais de saúde, mas que sabemos não ser cumprida. Em Portugal, o cigarro ainda é desculpabilizado e, nos cursos de ciências da saúde (farmácia, enfermagem, entre outros), não há formação sobre o tabagismo. Ora, o tabagismo é uma doença!”, exclama. A OMS defende aliás que os hábitos tabágicos passem a fazer parte da lista de sinais vitais, tal como a pressão arterial ou a frequência cardíaca, e sejam medidos de forma rotineira, sistemática, pelos profissionais de saúde.

A consulta de cessação tabágica é também fundamental para o rastreio do cancro do pulmão, destinado aos fumadores com critérios de alto risco e que consiste na realização de uma TAC torácica de baixa dose anual. “Não pode haver rastreio do cancro do pulmão que não inclua uma consulta de cessação tabágica”, afirma Susana Simões, que acredita que um programa que junte as duas coisas pode estar para breve na Fundação Champalimaud.

Texto de Ana Gerschenfeld, Health & Science Writer da Fundação Champalimaud.
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