12 Dezembro 2025

Um telefonema e uma página em branco

20 Anos, 20 Histórias
— Momentos decisivos com Leonor Beleza

Leonor Beleza

Foi um telefonema que desencadeou tudo. Alterou a vida de Leonor Beleza e, em última análise, moldou a vida de inúmeras outras pessoas que, um dia, encontrariam o seu caminho até à Fundação Champalimaud (FC). Não foi apenas um telefonema, claro, mas o culminar de tudo o que Leonor tinha construído ao longo de décadas de serviço público, defesa dos direitos das mulheres, experiência política e da profunda convicção de que as instituições existem para servir as pessoas.

Anos antes da sua morte, António Champalimaud ligou a Leonor Beleza para lhe colocar uma pergunta aparentemente simples: estaria disponível para presidir à fundação que pretendia criar no seu testamento? A resposta foi imediata, “Sim.” A conversa foi breve, quase mundana, mas o peso do que implicava era já inquestionável. Ninguém sabia o que seria o projecto, nem a sua dimensão, nem a forma que poderia tomar. Mas Leonor percebeu a magnitude da confiança que lhe estava a ser depositada.

Quando o testamento foi lido, a ambiguidade era evidente. “António Champalimaud podia ter deixado instruções”, diz Leonor. “Pedi-lhe que o fizesse. Mas não deixou.” Em vez disso, deixou algo maior: liberdade e responsabilidade em igual medida. “A nossa tarefa”, recorda, “era compreender o que o Fundador poderia ter desejado, aceitando que tinha colocado deliberadamente o futuro nas nossas mãos.”

O que se seguiu não consistiu na execução do plano de outra pessoa, mas antes um começar a partir de uma página em branco. Formou-se uma pequena equipa central, incluindo João Silveira Botelho, cuja combinação de clareza estratégica e capacidade operacional Leonor descreve como crucial, para liderar este esforço. Juntos começaram a imaginar um projeto sem limites de ambição, apoiando-se na sua própria visão e iniciativa, com o apoio de Daniel Proença de Carvalho e os curadores científicos António Coutinho e António Damásio. 

Desde logo, mergulharam numa viagem de aprendizagem intensiva, visitando laboratórios, universidades, organizações filantrópicas e hospitais, sobretudo nos Estados Unidos. Reuniram factos, conselhos, avisos e palavras encorajadoras. Vinda do universo do direito e da política, Leonor costuma dizer que teve de aprender “como pensam os cientistas”. Essa curva de aprendizagem tornou-se um guia.

O foco inicial estava na investigação da visão. Mas quanto mais aprendiam, mais amplo se tornava o caminho. A neurociência emergiu como uma das grandes áreas de sofrimento humano sem o correspondente e proporcional investimento. O cancro, também, exigia uma abordagem em que a descoberta e o cuidado estivessem plenamente integrados. A FC não se limitaria a financiar projectos à distância. Faria investigação, prestaria cuidados clínicos e levaria a cabo aquilo a que Leonor mais tarde chamou de “ciclo completo da investigação biomédica”.

Este modelo, sublinha Leonor, é uma das contribuições mais originais da FC: “Praticamos aquilo a que chamamos ‘investigação de fusão’, investigadores e clínicos trabalham lado a lado, com os doentes, para acelerar a descoberta.” Está, no seu entender, alinhado com o que o Fundador desejava: um lugar onde, tangivelmente, a ciência melhora vidas.

Se definir “o que” a FC faria exigiu aprendizagem; definir “o onde” se localizaria exigiu perseverança. Garantir os terrenos ribeirinhos de Lisboa revelou-se um dos desafios mais exigentes da sua liderança. Houve obstáculos, recusas, longas demoras, abordados com tenacidade, e esforços continuados até assegurar o lugar onde o Tejo encontra o Atlântico. Um local simbólico, de onde outrora partiram navegadores portugueses rumo ao desconhecido.

Com o terreno confirmado, a atenção voltou-se para a escolha do arquiteto. O convite a Charles Correa provou ser decisivo. Tinha uma visão particular pois acreditava que os edifícios deviam incorporar o espírito da sua finalidade, e o futuro campus refletiria a história de exploração marítima de Portugal e a viagem contemporânea da descoberta científica.

O nome do campus surgiu de forma inesperada, à mesa de almoço, antes da construção ter sequer começado. À mesa estavam Leonor Beleza, Charles Correa, a imunologista Maria de Sousa e João Silveira Botelho. Discutiam conceitos, identidades, intenções quando João, de repente, disse: “Champalimaud Centre for the Unknown.” A mesa ficou em silêncio por um instante antes de todos concordarem: o nome era perfeito, captava, numa única frase, a ambição de explorar o que ainda não é conhecido e a humildade de reconhecer o muito que falta descobrir. A partir desse momento, como diz Leonor, a instituição ganhou não apenas um edifício, mas uma declaração de propósito. A frase encerrava tudo em si: ambição, curiosidade, humildade, descoberta.

Os anos de construção foram simultaneamente desgastantes e entusiasmantes. Houve a “corrida louca”, como Leonor lhe chama, para inaugurar o Centro a 5 de outubro de 2010, o centenário da República Portuguesa, uma data carregada de significado. Houve desafios técnicos que quase comprometeram escolhas arquitetónicas chave: a enorme janela do auditório que parecia impossível de construir, a ponte que liga os edifícios, a delicada engenharia da fachada de vidro. Cada obstáculo, ultrapassado com muita persistência, tornou-se num elemento icónico do edifício.


Entretanto, a Fundação Champalimaud já estava a trabalhar. Investigadores eram acolhidos no Instituto Gulbenkian de Ciência; parcerias e colaborações eram estabelecidas; e tinha começado o recrutamento de uma equipa de excelência a nível mundial. Muito cedo na atividade da Fundação, foi lançado o Prémio António Champalimaud de Visão. A sua primeira cerimónia, no Palácio Presidencial em Nova Deli, permanece vívida na memória de Leonor, com o Presidente Abdul Kalam a chamá-lo de “o Nobel da Visão”, um sinal de que uma instituição ainda por construir em Lisboa já era reconhecida internacionalmente.

Houve também encontros e perdas pessoais que deixaram marcas profundas: conversas com Simone Veil em Paris sobre a missão da Fundação; a decisão de Jacques Delors de colaborar devido ao seu foco na investigação clínica oncológica; a primeira visita ao LV Prasad Eye Institute em Hyderabad em 2006; o momento emocional do anúncio do vencedor do primeiro Prémio de Visão, no Aravind Eye Care em Madurai; e a morte de António Borges, membro fundamental e inestimável do primeiro Conselho de Administração.

Mas o momento a que Leonor regressa mais frequentemente, quando recorda o passado, é a inauguração do Centro Champalimaud (Champalimaud Centre for the Unknown). “Nesse dia”, diz, “estava tudo ali”: a arquitetura, a ciência, a luz do rio, a ambição de servir, a memória do Fundador.

Ao refletir sobre o passado, Leonor descreve a vida da Fundação Champalimaud em quatro fases.
A primeira, até 2008, definiu o seu perfil, lançou o Prémio Visão e iniciou o recrutamento de investigadores.
A segunda, de 2008 a 2011, foi dedicada à construção.
A terceira, de 2011 a 2018, viu laboratórios e clínicas florescerem, e a área clínica evoluir de cuidados em ambulatório para um centro cirúrgico e clínico em pleno.
A quarta e atual fase é definida por expansões importantes: o Centro Botton-Champalimaud para o cancro do pâncreas e um ousado investimento em terapeuticas digitais com o Centro de Neurotecnologia Regenerativa.

Mas a atenção de Leonor está firmemente no que está para vir. Imagina um mundo em que os tratamentos são verdadeiramente personalizados, em que a inteligência artificial transforma a descoberta e o cuidado, e onde a tecnologia e o discernimento humano devem encontrar um equilíbrio delicado. “Quanto mais tecnologia utilizarmos”, nota, “mais atenção devemos dar à pessoa que temos à nossa frente.”

Sim, foi um simples telefonema que iniciou este caminho. Mas tudo o que se seguiu, a imaginação, a perseverança, a ambição, a humanidade, é construído dia após dia por uma equipa unida por uma visão, uma paixão e um propósito comuns. Juntos, criaram uma instituição que continua a melhorar vidas, perto e longe.
 

Leonor Beleza, Presidente, Fundação Champalimaud

Teresa Fernandes, Co-coordenadora da Equipa de Comunicação, Eventos & Outreach da Fundação Champalimaud

Coleção 20 Anos, 20 Histórias comleta aqui

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