20 Novembro 2025

Uma cabeça para muitos chapéus

20 Anos, 20 Histórias
— Liberdade de arriscar com Albino J. Oliveira-Maia

Albino J. Oliveira-Maia

Quando entrevistei o Albino J. Oliveira-Maia, falámos dos desafios e das lições que moldaram a sua carreira. O que mais me marcou foi a capacidade de navegar caminhos diferentes em simultâneo e de criar espaço para continuar a fazê-lo. Ao escrever isto, espero partilhar essa coragem com quem hoje se pergunta que caminho seguir.

Albino é psiquiatra e diretor da Unidade de Neuropsiquiatria da Fundação Champalimaud (FC), onde vê doentes e faz investigação. Mas o seu percurso não foi linear. Começou com o curso de Medicina, mas quando chegou o momento de escolher a especialidade, hesitou. “Estava entre caminhos, carreiras e ideias, a tentar decidir entre ser médico, ser cientista ou ser os dois”, recorda.

Já interessado no cérebro e na saúde do mesmo, quando surgiu a oportunidade de entrar num programa de doutoramento em neurociências, aproveitou-a. Descreve esses anos como um “entra e sai entre áreas”. Depois de terminar Medicina, começou o doutoramento, que depois parou para iniciar o internato geral. Mais tarde, decidiu não começar logo a especialidade e sim terminar o PhD na Universidade de Duke.

A escolha de ir para Duke não foi aleatória. O neurocientista Rui Costa tinha dado aulas no seu programa de doutoramento (o GABBA) e o Albino acompanhava o seu percurso científico. “Acabei no laboratório do Nicolelis porque ouvi falar do trabalho do Rui, entusiasmei-me e trabalhei para lá chegar”, diz. Quando chegou, o Rui estava a terminar o pós-doutoramento, mas a ligação manteve-se e marcou um ponto de viragem na sua carreira.

Concluído o doutoramento, o Albino queria voltar a Portugal e à Medicina, mas não estava pronto para deixar a investigação. “Assumi a ideia de tentar fazer as duas coisas”, diz com um sorriso. Sem saber como conciliar Psiquiatria e Ciência, ligou ao Rui a pedir conselhos. A resposta surpreendeu-o: “Porque não vens para Lisboa? Talvez haja espaço para trabalhares comigo na FC enquanto fazes a especialidade”. O Albino recorda com ternura: “Foi esse o caminho. Não estava planeado, mas tornou-se naquilo com que um dia tinha sonhado”.

O Albino veio então para a FC, que nessa altura ainda estava no Instituto Gulbenkian de Ciência, e o espaço era um problema. Como dividia os dias entre a residência e o laboratório, nem secretária tinha. Até que um dia “ vi dois armários de arquivo com espaço entre eles e pensei: ‘Se calhar cabe aqui uma secretária.’ Encontrei uma tábua de madeira antiga, pus em cima dos armários e sentei-me”. O Rui, claro, riu-se e disse: “Agora vamos ter de arranjar-te uma secretária a sério”.

Recorda esses como “muito bons tempos de construir algo, de pôr ideias a mexer”. Um pequeno grupo de jovens cientistas criava não só projetos, mas um programa científico inteiro. Ainda assim, equilibrar a liberdade criativa da FC com a estrutura rígida do treino hospitalar foi duro: “Os dois mundos não podiam ser mais diferentes, e isso foi ao mesmo tempo um desafio e um privilégio”. O Albino mantém a gratidão pela confiança do Rui. “Deu-me uma liberdade extraordinária, mas também a soube orientar: um ato de grande generosidade e visão”. Essa confiança permitiu-lhe crescer nas duas áreas.

Uma coisa que o orgulha no percurso pessoal é ter ajudado a aproximar a investigação fundamental e a clínica na FC. “A instituição define a sua missão como produzir conhecimento ao serviço da saúde”, diz, “mas isso não é fácil. É preciso a cultura, infraestruturas e linguagem certas”. O edifício principal da FC cria o ambiente ideal para integrar os dois mundos sob o mesmo teto. Mas partilhar o edifício não basta: “A ideia de que é possível construir uma cultura e uma linguagem comuns é difícil, uma responsabilidade muito séria e um privilégio extraordinário”, diz Albino. Vê-se entre os que ajudam a erguer essa ponte: “Mais do que mostrar como se faz, mostrámos que é possível fazer”.

Falando de desafios, o maior é o tempo, porque, como descreve, está sempre “a tentar desempenhar vários papéis dentro do mesmo dia”. Ainda assim, agradece o equilíbrio: “Tive a sorte de estar rodeado de pessoas que me facilitaram construir um caminho clínico e científico. Tudo isso, preservando o meu mundo pessoal, onde posso crescer e desfrutar da minha família e amigos, tem sido essencial”. Outro desafio foi o sentimento de pertença. “Durante muito tempo, onde quer que estivesse, via-me como pertencendo a outro lugar, quase como se não pertencesse a lado nenhum”. Com o tempo, aprendeu a fundir essas identidades, “a usar um chapéu que serve vários papéis”, o que simplificou tudo.

Ao pensar no que mais valoriza na FC, vem-lhe à cabeça a liberdade de pensamento. Embora considere a liberdade de ação essencial, é a possibilidade de pensar sem restrições que mais aprecia na FC: “Essa liberdade importa, e acho que é algo que a instituição incentiva muito e que deve ser protegido”.

Ao terminar a conversa, o Albino partilhou uma história comovente sobre uma das pessoas com cancro avançado que acompanhava e que sofria de ansiedade. “Tinha uma ansiedade enorme perante a perspetiva realista de uma esperança de vida limitada e custava-lhe aceitar isso”, explica. Muitas vezes vinha às consultas com o companheiro, discreto e tranquilo, que não partilhava o mesmo nível de ansiedade. A ansiedade manteve-se até que, um dia, chegou à consulta inesperadamente sereno. “O cancro não tinha desaparecido, pelo contrário, tudo progredia como esperado, mas estava profundamente calmo, sem qualquer mudança terapêutica”, recorda Albino. “Perguntei: ‘Está melhor. O que aconteceu?’ E a razão parece quase absurda e, no entanto, é profundamente significativa”.

“O companheiro tinha morrido”, diz Albino, e isso levou o doente a refletir sobre “o que todos carregamos sempre connosco: a nossa própria mortalidade”. Explicou que o companheiro morreu de repente e pensou: “Esta ansiedade que tive todo este tempo, com que tenho vivido, o meu companheiro não a tinha, e morreu na mesma. Conseguiu viver o fim da vida com serenidade, sem tormento”. Isso ofereceu um elemento psicoterapêutico, uma lente sobre algo óbvio: “a ideia de que o nosso último dia pode ter valor, independentemente de sabermos se é o último”. O Albino conta muitas vezes esta história, na esperança de dar força a quem possa precisar, e coragem para seguirem o caminho com que sonharam.

 

Albino J. Oliveira-Maia, Psiquiatra e Investigador Principal, Unidade de Neuropsiquiatria, Fundação Champalimaud 

 
Texto de Ana Rita P. Mendes, Communication & Events Manager da Equipa de Comunicação, Eventos e Outreach da Fundação Champalimaud

 

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