22 Fevereiro 2023

Zoom-In on Champalimaud - Terceira Edição - Número 1

Do Dia do Alzheimer (21 de setembro) ao Dia do Lixo Zero (30 de março), quase todos os dias são dias (inter)nacionais! E, como na Fundação Champalimaud não faltam pessoas com um vasto leque de experiências, interesses e conhecimento, para a 3ª Edição de 'Zoom-In' decidimos desafiar um membro da nossa comunidade com uma ligação especial à data que assinalamos.

Zoom-In on Champalimaud - Terceira Edição - Razvan Sandru sobre o Dia Mundial do Pensamento

22 de fevereiro é o Dia Mundial do Pensamento, uma data originalmente assinalada em 1926 pelas Raparigas Guias e Escuteiras, mas que hoje em dia incentiva todos a reservar um momento de reflexão sobre as questões mais profundas, bem como defender causas que podem melhorar vidas em todo o mundo.

Adrian Razvan Sandru é investigador de pós-doutoramento no Laboratório de Neurociência de Sistemas | Mainen Lab. É especializado em filosofia e em particular em fenomenologia: o estudo de como a experiência se forma e se desenvolve. Está interessado em experiências menos comuns pois acredita que podem fornecer uma nova visão sobre como cada um se relaciona consigo mesmo e com o mundo de uma maneira significativa.

Há alguma coisa que possa ser considerada realmente "verdadeira" ou tudo é subjetivo?

Acho que esta é uma pergunta adequada para começar esta celebração ao Dia Mundial do Pensamento. Também é uma questão controversa, especialmente nestes tempos da pós-verdade, mas vamos passo a passo e ver onde isso nos leva. Em primeiro lugar, acho que é uma pergunta adequada porque a “verdade” é um operador lógico ou uma função do pensamento. Só por isso, a verdade já está entrelaçada com a subjetividade. No entanto, precisamos prestar muita atenção ao que significa subjetivo. Embora hoje em dia subjetivo seja muitas vezes visto como sinónimo de relativo, nem sempre foi assim. De facto, o que a ciência considera verdadeiro remonta às filosofias e epistemologias dos séculos XVII e XVIII, especialmente à tradição kantiana (e posteriormente neokantiana).

Com o Renascimento e depois com o Iluminismo veio também a consciência – ou melhor, a preocupação da época – de que Deus ou qualquer outra entidade absoluta não pode atuar como garantia da verdade, como ocorria na antiguidade, mas também na Idade Média. Uma nova medida de verdade precisava ser descoberta e, sob a influência de Descartes, os filósofos começaram a olhar para dentro de si.

A suposição principal era que o pensamento é a única realidade indubitável e estável imediatamente acessível a todos nós. Sob este pressuposto, o projeto da Modernidade veio refundar e reconstruir as leis da natureza e da realidade, a partir daquele facto inabalável da nossa existência: o pensamento. A proposição kantiana era que todos nós compartilhamos as mesmas estruturas de pensamento ou composição cognitiva e que, com base nisso, todos nos relacionamos com o mundo ao nosso redor mais ou menos da mesma maneira. Essa estrutura compartilhada de experimentar o mundo significava que as experiências individuais podiam ser comunicadas e compreendidas por outros, o que implicava que podemos ter afirmações gerais sobre o mundo que valem não apenas para nós individualmente, mas também para os outros. Tais declarações poderiam então ser consideradas objetivamente verdadeiras quando baseadas em um fenómeno observável.

Estas ideias rapidamente entraram no pensamento científico e passaram a definir algo como verdadeiro se for observável, repetível e verificável, uma estrutura que, acredito, define a maneira como pensamos hoje. Com o tempo, essas ideias foram enriquecidas com perspetivas mais incorporadas ou culturalmente diversas. No entanto, penso que o conceito de verdade com o qual operamos hoje não pode ser desvinculado das estruturas subjetivas que nos definem como humanos, mas deve ser considerado em conjunto. Com isto em mente, diria que existem “verdades” comumente aceitas baseadas em observações rigorosas e experiências compartilhadas, mas que essas verdades estão sempre abertas ao debate e à mudança. Assim, embora as coisas possam ser verdadeiras, eu diria que não podem ser absolutamente verdadeiras, caso contrário, nós, como investigadores, seríamos supérfluos.

Se um clone perfeito de si fosse criado, até o mais ínfimo detalhe celular, seria você ou faltaria sempre algo?

Esta é mais uma pergunta muito oportuna. Todos nós já ouvimos falar de novos Modelos de “Large Language” e IAs que estão a causar impacto na sociedade por causa das suas capacidades generativas. Com esse aumento na consciencialização sobre a IA, questões de sensibilidade ou a natureza humana de tais sistemas tornaram-se cada vez mais prementes. Uma das formas mais populares de lidar com essas questões é o teste de Turing, que pergunta: “Se uma máquina possuísse todas as qualidades de um ser humano como eu, seria igual a mim; seria um humano?”. A história do teste de Turing também é interessante. Turing desenvolveu o teste com base na teoria de Leibniz, que afirmava que quaisquer dois objetos que tivessem exatamente as mesmas qualidades seriam indistinguíveis um do outro. Um dos seus exemplos foram duas folhas idênticas. Entretanto, esta teoria, só se sustenta num mundo puramente lógico. Como Kant argumentou contra ele, para distinguir entre quaisquer dois objetos, alguém (ou algo) deve fazer a distinção e esse alguém (ou algo) teria que fazê-lo de uma certa perspetiva. Assim que a questão da perspetiva entra em jogo, percebemos que duas coisas não podem ocupar o mesmo espaço e tempo, por mais idênticas que sejam.

Ora, a distinção pode sempre ser feita entre duas coisas completamente idênticas devido à sua imersão nos seus respetivos contextos de tempo-espaço. O mesmo se aplica a um clone hipoteticamente perfeito de mim mesmo. O clone pode compartilhar a minha composição genética e parecer-se comigo em todos os mínimos detalhes, mas ocuparia um tempo e espaço diferentes e, por isso, teria uma perspetiva distinta da minha. Tendo isto em consideração, o meu clone não seria totalmente idêntico a mim.

É possível pensar em si mesmo quando você é você mesmo? Existem diferentes níveis de você, onde um nível superior pode pensar sobre um nível inferior, mas não vice-versa?

Esta questão baseia-se muito bem nas anteriores. Acho que é evidente que podemos pensar em nós mesmos sobre como somos. O simples facto de me fazer essa pergunta e eu respondê-la é uma indicação de que esse mesmo processo está a acontecer. Agora, para que eu possa pensar em mim mesmo, devo de alguma forma tornar-me o objeto do meu próprio pensamento.
No entanto, como objeto do meu próprio pensamento, não posso ser pensado como o meu todo, uma vez que o objeto pensado não inclui o próprio processo de pensar. Esta simples distinção operacional levou muitos a pensar que o “eu” tem muitas camadas: uma explicitamente expressável, outra implicitamente presente na camada explicitamente expressável, mas também camadas que estão fora da mente e da vista. Estas teorias do eu multicamadas também implicam que nenhuma imagem, pensamento ou declaração sobre o meu eu pode expressá-lo completamente. Além disso, estamos expostos a um fluxo constante de experiências e eventos que moldam os nossos modos de ser, pelo que diria que o eu é um poço inesgotável de exploração.
Se, neste eu multidimensional, existe uma camada mais acima do que outra, não posso dizer com certeza. No entanto, eu penso nessas camadas como simétricas entre si: enquanto o pensamento abstrato é bom em ordenar logicamente uma variedade de percepções e experiências em declarações comunicáveis, as camadas emocionais são boas em trazer uma impressão mais flexível e diversificada do mundo à consciência e os processos sensório-motores são bons em adaptar-se tacitamente às possibilidades em constante mudança dos nossos ambientes. E todos estes se alimentam uns dos outros, informando e permitindo uma infinidade de perspetivas sobre nós mesmos, cada um tão relevante quanto o outro.

Há perguntas que é melhor deixar sem resposta?

Acho que não nos devemos esquivar de responder às perguntas. Porém, acho que todas as perguntas devem ser consideradas parcialmente sem resposta, convidando-nos a nunca parar de nos questionar a nós mesmos, o mundo ao nosso redor e as crenças que temos sobre ele.

Editado por John Lee, Content Developer da Equipa de Comunicação, Eventos & Outreach da Fundação Champalimaud.
Traduzido por Catarina Ramos, Co-Coordenadora da Equipa de Comunicação, Eventos & Outreach da Fundação Champalimaud.
Razvan Sandru sobre o Dia Mundial do Pensamento

 

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