04 Janeiro 2023

A Dieta Mediterrânica é mais do que uma dieta, é um estilo de vida

Dieta Mediterrânica, dieta cetogénica, jejum intermitente. Qual destas estratégias alimentares é a mais susceptível de diminuir o risco de se vir a desenvolver cancro?

"The Mediterranean diet is more than a diet, it’s a way of life", Marta Carriço

Entrevista com Marta Carriço, nutricionista da Fundação Champalimaud.

Marta Carriço é nutricionista e faz parte da equipa do Programa de Oncorrisco do Centro Clínico Champalimaud. Nesta entrevista, explica muito objectivamente o que se sabe – e o que não se sabe – sobre o impacto da alimentação na prevenção da doença oncológica. E aposta fortemente na chamada Dieta Mediterrânica.  

Se tivesse de recomendar uma única coisa às pessoas que decidem mudar de alimentação para reduzir o seu risco de cancro, qual seria o comportamento alimentar que aconselharia alterar com a maior urgência – o primeiro passo na mudança?

Acho que o mais importante de tudo é aumentar o consumo de hortofrutícolas – os legumes e as frutas. Nós, portugueses, estamos muito aquém da recomendação de 400g de hortofrutícolas por dia. De acordo com o último Inquérito Alimentar Nacional e de Atividade Física (2016), 56% dos portugueses não cumprem esta recomendação. Os produtos hortícolas contêm fibra, vitaminas e minerais, fundamentais para o organismo, e têm vindo a ser associados à prevenção da doença oncológica. É possível aumentar o consumo de hortícolas através da inclusão de sopa, algo muito tradicional em Portugal. A fruta pode ser pensada como sobremesa ou como snack. O primeiro passo seria, portanto, incluir legumes e frutas nas refeições principais – uma das principais características da Dieta Mediterrânica. 

Em que consiste a Dieta Mediterrânica?

A Dieta Mediterrânica é mais do que uma dieta, é um estilo de vida: é habitualmente representada por uma pirâmide em cuja base se incluem, entre outros, o exercício físico, a convivência e a partilha de tradições e conhecimentos culinários. Considerando que uma das dificuldades na adopção de um bom padrão alimentar reside em seleccionar o que comer e como o preparar, como referem algumas pessoas que vemos em consulta – existindo até o preconceito que comer bem é dispendioso do ponto vista financeiro e de tempo –, esta partilha de conhecimento, de geração em geração, é muito importante.
 
A Dieta Mediterrânica também aposta muito na sazonalidade e no consumo de produtos locais, o que faz com que os produtos sejam tendencialmente mais ricos em vitaminas e minerais. No que toca aos alimentos propriamente ditos, é um padrão que promove muito mais o consumo de produtos de origem vegetal: os hortofrutícolas, de que já falámos, e os cereais integrais que, pelo seu teor de fibra, também são muito importantes no contexto da prevenção do cancro. 
 
A Dieta Mediterrânica também promove muito o consumo de gorduras insaturadas, que têm um perfil anti-inflamatório – o azeite e as azeitonas, os frutos e as sementes oleaginosas, etc. E promove ainda o consumo moderado de produtos de origem animal, nomeadamente de carne e produtos lácteos, bem como um consumo muito esporádico de carnes processadas (charcutaria), de bebidas alcoólicas e de produtos açucarados. 
 
Portanto, estabelece um equilíbrio bastante importante entre alimentos de origem vegetal e animal. Todos os alimentos têm um lugar nesta dieta, até os produtos açucarados, apesar de não os devermos consumir mais de uma vez por semana. É uma questão de bom senso. E é esse equilíbrio que faz com que a Dieta Mediterrânica tenha um perfil anti-inflamatório positivamente associado à prevenção da doença oncológica.

E o consumo de sal?

Esse é um dos grandes problemas dos portugueses. Nós consumimos em média mais de 10 gramas de sal por dia, quando a recomendação oficial é de cinco gramas no máximo. O consumo excessivo de sal tem sido  associado, por exemplo, ao cancro do estômago [ver https://fchampalimaud.org/pt-pt/news/entrevista-paulo-fidalgo]. Este fenómeno acaba por ser uma das várias explicações para sermos um dos países com maior prevalência de cancro do estômago… Neste contexto, a Dieta Mediterrânica traz vantagens, porque aposta muito, para conferir sabor às refeições, nas especiarias e nas ervas aromáticas em vez do sal. 

A Dieta Mediterrânica é considerada como a melhor dieta em termos de prevenção do cancro?

Na verdade, é sobretudo a mais estudada enquanto padrão alimentar [ri-se] – e aquela para a qual temos mais dados. Mas há muitas razões para justificar o papel desta dieta na prevenção da doença oncológica, nomeadamente, os vários anti-oxidantes (vitaminas e minerais) e os componentes anti-inflamatórios presentes nos produtos de origem vegetal, tais como os fitoquímicos (os nutrientes das plantas). Os fitoquímicos participam em muitos processos do nosso organismo: na prevenção de mutações genéticas (que podem tornar as células cancerosas) e no equilíbrio do nosso estado inflamatório (nós precisamos de um equilíbrio entre os agentes inflamatórios e anti-inflamatórios), entre outros. Por outro lado, a Dieta Mediterrânica promove um consumo significativo de fibra, com efeitos sobre o microbioma – que, por sua vez, tem sido cada vez mais apontado como determinante na prevenção ou promoção de cancro, por intermédio também do sistema imunitário. No padrão mediterrânico, a alimentação acaba portanto por ter um papel no fornecimento de recursos ao organismo que são fundamentais para que este se proteja das mutações e responda adequadamente quando elas surgem.

E que dizer do jejum intermitente?

Actualmente, não se sabe se o jejum intermitente pode ajudar a prevenir ou tratar o cancro. Os estudos são ainda muito preliminares e contraditórios no contexto do cancro. Podemos fazer aqui, no entanto, uma associação com a obesidade: a obesidade é um dos grandes factores de risco para o cancro e têm sido desenvolvidos estudos sobre o papel do jejum na obesidade. Os resultados parecem promissores, mas não podemos afirmar ainda que se trata de uma melhor estratégia do que outras para tratar ou prevenir a obesidade e, consequentemente, diminuir o risco de cancro associado. Quando existe um diagnóstico de cancro, considero que é sempre importante alertar que, não existindo evidência que o jejum intermitente é uma estratégia eficaz, é preciso muita cautela na sua adopção. Isto porque há, entre outros, um risco acrescido de perda de peso e de massa muscular nesta fase, o que está associado a um pior prognóstico oncológico. Assim, encurtar o período da alimentação pode não ser a melhor estratégia, na maioria dos casos.

Como disse, existe uma forte associação entre cancro e obesidade. O que é que nos garante que, mesmo aderindo à Dieta Mediterrânica, não vamos ingerir calorias em excesso?

Não podemos garantir que isso não aconteça. Mas sabemos que este padrão alimentar está associado a um menor risco de obesidade e excesso de gordura corporal. Uma das explicações desta associação pode estar relacionada com o maior consumo de fibra vegetal, que promove a sensação de saciedade, podendo fazer com que comamos menos. Os vegetais têm uma menor “densidade nutricional” – isto é, mais volume em relação ao seu valor calórico – e ficamos portanto mais rapidamente saciados devido ao seu volume. Porém, se comermos demasiados cereais integrais e gorduras consideradas saudáveis – azeite, nozes, amêndoas, etc. –, e ingerirmos mais calorias do que gastamos, vamos aumentar de peso.
 
Estamos aqui a falar de recomendações gerais para a população que nos ajudam a “balizar” a frequência e as porções ideais para os vários grupos alimentares, não do caso a caso. As pessoas são muito diferentes, portanto não há garantias; cada caso tem de ser avaliado e, idealmente, deve ser estabelecido um plano nutricional individualizado, adaptado às necessidades de cada pessoa.

Há cancros cujo risco não diminui com uma dieta saudável e equilibrada?

Há cancros para os quais não há evidência de que a dieta possa diminuir o seu risco: cancro da pele, cancro do ovário, alguns cancros do sangue. Mas mesmo assim, na maioria desses casos, a obesidade surge como um factor de risco. Portanto, a dieta acaba por ter um impacto indirecto.
 
Ainda precisamos de perceber muito melhor qual é o papel da dieta; a nossa análise ainda não é suficientemente profunda. Os estudos são epidemiológicos – consistem em observar o que as pessoas comem e ver se desenvolveram ou desenvolverão ou não cancro. Não temos um ambiente controlado, como ocorre num ensaio clínico. E, apesar de haver justificação científica para o papel de alguns alimentos no cancro, estamos muitas vezes a observar e a tirar ilações, o que torna difícil estudar o impacto da dieta na prevenção – ou no tratamento – da doença oncológica.
 
No âmbito da prevenção, organizações como a World Cancer Research Fund e o American Institute for Cancer Research procuram concentrar e analisar os estudos com relevância científica para tentar emitir recomendações. Sabe-se assim que o consumo de carnes processadas está associado ao aumento de risco de cancro colorretal, enquanto que o consumo de alimentos ricos em fibra está associado à diminuição do risco. Ainda segundo essas análises, a obesidade é um factor de risco para mais 12 tipos de cancro, o que é de extremo relevo, uma vez que mais de metade da população portuguesa tem excesso de peso ou obesidade. 

O que é possível fazer para motivar as pessoas a ter uma alimentação saudável e equilibrada?

Na minha opinião, temos de investir na literacia alimentar das crianças – quanto mais cedo melhor –, por forma a promover hábitos saudáveis para toda a vida e para que a informação chegue ao ambiente familiar. Tal como aconteceu com os hábitos de reciclagem, há uns anos. Promover a literacia alimentar e nutricional junto das crianças, pode, a meu ver, fazer a diferença. Não só por porque as leva a adquirirem conhecimentos sobre o que é uma alimentação saudável, mas também a saber como preparar refeições saudáveis e equilibradas, envolvendo toda a família. 

Na Fundação Champalimaud, existe uma consulta, que inclui questões nutricionais, destinada à prevenção do cancro.

Na Fundação temos o Programa de Oncorrisco, liderado por Paulo Fidalgo [gastroenterologista], onde avaliamos o estilo de vida das pessoas que vêm à consulta (o estilo de vida pode acarretar um risco acrescido de 30 a 50% de vir a desenvolver doença oncológica). Avaliamos a quantidade de massa gorda da pessoa e a sua adesão ao padrão alimentar mediterrânico. Conseguimos dizer se a pessoa tem uma adesão alta, moderada ou baixa à Dieta Mediterrânica utilizando uma ferramenta chamada “escala Predimed” e, com base nos resultados, formulamos algumas recomendações alimentares. As pessoas que vêm à consulta de Oncorrisco estão motivadas para diminuir o seu risco de cancro – ou porque têm familiares com cancro e querem conhecer o seu próprio risco, ou porque, em termos clínicos, foi-lhes detectado um risco acrescido de virem a ter cancro. Mas normalmente, são pessoas que têm um risco familiar.

O seu recente livro, Comer para prevenir e enfrentar o cancro, escrito em co-autoria com a nutricionista Catarina Sousa Guerreiro, é baseado na evidência científica actual. Em particular, desconstrói uma série de mitos sobre as maravilhas das dietas mais mediáticas. Acha que poderia motivar quem o ler a mudar de comportamento alimentar?

Espero que sim. O nosso objectivo com o livro era de facto desmistificar certas dietas muito mediáticas e explicar de que forma comer para prevenir e enfrentar o cancro. Espero que tenhamos conseguido.
 
Acho que o livro pode motivar os seus leitores porque não promete o que não está provado, apostando, pelo contrário, no conhecimento científico. E não aconselha estratégias irrealistas de pôr em prática. Muitas das dietas tidas como milagrosas, supostamente capazes de curar o cancro – como a dieta cetogénica, predominantemente à base de gordura, ou dietas que prometem mudar o pH do nosso sangue (algo que sabemos não ser possível através da alimentação) –, criam muita ansiedade nas pessoas e promovem estratégias alimentares desajustadas e desequilibradas. Ora, o que nós dizemos é que há uma dieta equilibrada, acessível, que nos é familiar em Portugal, e que pode efectivamente ter um impacto sobre o risco de cancro. Isso poderá motivar – e sobretudo descansar – não só os doentes com cancro e os seus familiares, mas também todos aqueles que desejam reduzir o seu risco de vir a desenvolver cancro.

Texto por Ana Gerschenfeld, Health&Science Writer na Fundação Champalimaud.
Nutrition Book by Marta Carriço

 

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