30 Outubro 2021

Projecto BOUNCE: falemos da resiliência das mulheres que vivem com cancro da mama

O projecto BOUNCE do programa europeu Horizonte 2020, lançado em 2017 e com uma duração de cinco anos, tem por objectivo conseguir prever a resiliência psicológica das doentes com cancro da mama que vivem com a doença. Em concreto, deverá fornecer aos clínicos uma ferramenta para adaptar as intervenções terapêuticas e pós-terapêuticas a cada doente com cancro da mama, de forma a ajudá-la a regressar à vida normal após a sua recuperação – em inglês, a expressão utilizada é “bounce back”. No passado 8 de Outubro, os participantes no projecto reuniram-se num webinar, organizado pela Fundação Champalimaud, para fazer o ponto da situação do projecto.

Projecto BOUNCE: falemos da resiliência das mulheres que vivem com cancro da mama

Um diagnóstico de cancro da mama não consiste apenas numa situação que coloca a vida em perigo. É também um choque psicológico, cujas repercussões podem prolongar-se muito para além da recuperação da doente, comprometendo a longo prazo o seu regresso a uma vida normal. No entanto, nem todas as pessoas reagem da mesma forma a uma mudança de circunstâncias tão radical como esta, que pode exigir intervenções clínicas invasivas, radioterapia e penosos regimes de quimioterapia. Confrontadas com tudo isto, algumas das doentes que sobrevivem ao cancro da mama não recuperam a sua vida normal, enquanto outras encaram perfeitamente o facto de terem de viver com a doença. Aqui, a palavra-chave é “resiliência”.

O que confere a certas doentes, mas não a outras, a força para lidar, com sucesso, com a doença, durante o tratamento e após a recuperação? Foi para responder a esta questão e implementar soluções concretas na prática clínica que o projecto científico BOUNCE foi lançado em 2017 através do Programa Horizonte 2020.

“Não existem definições consensuais de resiliência”, diz Berta Sousa, médica oncologista da Unidade da Mama do Centro Clínico Champalimaud – que é uma das pessoas responsáveis pelo projecto BOUNCE em Portugal. Especificamente, a definição adoptada pelo grupo de investigadores envolvidos no projecto BOUNCE foi introduzida, em 2014, pelo psiquiatra Steven Southwick, da Universidade Yale, e estipula que “o conceito de resiliência inclui um funcionamento positivo saudável, adaptativo e integrado, ao longo do tempo, no rescaldo da adversidade”. A “resiliência”, explica ainda um texto publicado no site do Programa Horizonte 2020 da Comissão Europeia, “envolve factores complexos tais como a biologia da doença, o estido de vida, o optimismo, as ligações interpessoais, vida social e até a espiritualidade”.

Infelizmente, a resiliência não tinha sido, até agora, reconhecida na doença oncológica, e em particular no cancro da mama, como uma questão a estudar cientificamente. “Existem estudos, [mas] a maior parte focam-se no sofrimento emocional e nas perturbações funcionais decorrentes do diagnóstico e do tratamento”, lê-se no mesmo texto.

O BOUNCE é um projecto multidisciplinar que envolve não apenas médicos, mas também psicólogos, especialistas em ciências computacionais e modelos matemáticos, bem como empresas de tecnologia digital. O seu derradeiro objectivo é fornecer, aos centros clínicos e aos hospitais, uma ferramenta computadorizada de tomada de decisão baseada num algoritmo e desenvolvida a partir de um modelo matemático da resiliência, que seja capaz de prever as consequências da elevada ou baixa resiliência. Ao conseguir que recuperem da doença também do ponto de vista pessoal, emocional e profissional, isso deverá ajudar as doentes que sobrevivem ao cancro da mama a recuperar as suas vidas.

O modelo matemático que está a ser desenvolvido pelo consórcio do BOUNCE fornecerá informação acerca da combinação de factores que modelam a capacidade de lidar com o cancro, permitindo a identificação precoce das mulheres em risco e a definição de intervenções adequadas, no momento certo, de forma a minimizar esse risco. 

Um grupo de investigadores, representantes dos países que participam no projecto – Itália, Finlândia, Israel, Grécia e Portugal – reuniu online, no passado 8 de Outubro, por iniciativa da Fundação Champalimaud, para fazer o ponto da situação.

Paula Poikonen-Saksela (a outra médica oncologista a coordenar o projecto), do Hospital Universitário de Helsínquia, na Finlândia, explicou que um ensaio clínico piloto, a decorrer em quatro centros médicos (na Finlândia, Itália, Portugal e Israel) tinha recrutado mais de 700 participantes entre Novembro de 2018 e Fevereiro de 2020. Foram recolhidos dados biomédicos, psicológicos e funcionais junto destas doentes, de três em três meses, durante os 18 meses a seguir ao início do tratamento oncológico de cada uma. Até Agosto de 2021, cerca de 500 doentes tinham completado o estudo.

Aplicando ferramentas de data mining e abordagens de aprendizagem automática a esta grande quantidade de dados, os cientistas começaram a identificar os factores e os processos susceptíveis de prever a resiliência e o bem-estar de uma doente ao longo daquilo a que os peritos chamam de “percurso de cuidados” (care pathway).

“Já finalizámos a recolha dos dados de mais de 500 doentes”, salientou Paula Poikonen-Saksela. Também obtiveram os primeiros resultados relativos ao poder preditivo do modelo de resiliência. Para isso, utilizaram a informação recolhida junto das doentes durante a primeira fase da doença (no início do tratamento e três meses depois) para prever o estado geral de saúde mental, a depressão e a qualidade de vida global de cada doente nove meses mais tarde (ou seja, 12 meses após o início do tratamento) – e a seguir confrontá-los com a situação real das doentes.

Os resultados preliminares mostram que “os mais fortes preditores desses estados são características psicológicas: o optimismo, a auto-eficácia, a mindfulness, a capacidade de fazer face à adversidade, o apoio social e [a reacção aos] efeitos secundários dos tratamentos”, acrescentou Paula Poikonen-Saksela. Factores médicos e de estilo de vida, tais como o exercício físico, também promoveram uma resiliência acrescida – enquanto os tratamentos sistémicos como a quimioterapia tiveram um impacto negativo no bem-estar das participantes.

A intervenção de Berta Sousa, que está actualmente a trabalhar num projecto sobre alterações cognitivas das doentes com cancro da mama, focou-se, pelo seu lado, num estudo cognitivo que faz parte do BOUNCE, numa colaboração entre o Centro Clínico Champalimaud e o Hospital Universitário de Helsínquia. Baseado no mesmo grupo de doentes, este estudo tem por objectivo perceber os efeitos cognitivos dos tratamentos oncológicos, designados em inglês pelo termo “chemobrain”. “As queixas das doentes relativas a alterações cognitivas [tais como problemas de memória], são uma complicação frequente do cancro e dos tratamentos do cancro”, disse Berta Sousa.

O estudo, que envolveu perto de 190 doentes (metade em Portugal e metade na Finlândia), ainda está a decorrer e os resultados são por isso preliminares. Mas sugerem que, nos seis meses a seguir ao diagnóstico da doença, não existem diferenças significativas, nos sintomas de perturbação cognitiva reportados pelas doentes, entre o grupo que fez quimioterapia e o grupo que não fez – sendo, para além disso, o impacto da terapia endócrina (hormonal) semelhante ao da quimioterapia.

“Estes resultados precisam ainda de ser confirmados por análises adicionais”, advertiu Berta Sousa, fazendo notar que um outro estudo, o TAILORX-PROMs (PROMs é o acrónimo de patient-reported outcome measures), destaca que a terapia endócrina também tem um impacto a longo prazo na função cognitiva subjectiva, principalmente nas doentes em pré-menopausa – e uma tendência a uma maior vulnerabilidade ao impacto da quimioterapia nas mulheres em pós-menopausa. São precisos mais estudos objectivos das alterações cognitivas em doentes com cancro da mama, concluiu Berta Sousa, uma vez que nestes estudos e noutros, as medições auto-reportadas da função cognitiva nem sempre são concordantes com as avaliações objectivas, nomeadamente a avaliação neuropsicológica e a  ressonância magnética funcional. 

O projecto BOUNCE deverá acabar no final de Abril de 2022. Os cientistas vão utilizar o tempo que resta para melhorar os modelos estatísticos e para realizar uma análise custo-benefício da utilização do módulo de apoio à decisão em contexto clínico. Se os benefícios desta abordagem forem substanciais, isso poderá mudar a prática clínica, permitindo que médicos forneçam recomendações personalizadas, em termos de apoio psicológico, às suas doentes.
 

Por Ana Gerschenfeld, Health & Science Writer da Fundação Champalimaud.
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